| Foto: Anna Sulencka/Pixabay
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Elevando ao céu, nas mãos feito concha, os resíduos do serviço de saúde (RSS), na penumbra do subsolo do hospital, Tereza dizia em voz inaudível pelo ruído incessante de máquinas: “Ó meu Jesus, perdoai-nos e livrai-nos do fogo do inferno, levai as almas todas para o céu, principalmente as que mais precisarem da Vossa Misericórdia”. Depositou os restos no centro do rosário cujas contas pequenas eram na forma de lágrimas transparentes contendo imagens de bebês e as maiores eram vermelhas, como lágrimas de sangue.

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Pôs-se de joelhos, a cabeça quase tocando o chão, como se estivesse no Getsêmani. Sentiu a presença de padre João, quem lhe ensinou a rezar o rosário assim nesses momentos: “Coloque-se no Jardim das Oliveiras, una-se à angústia de Jesus, antes mesmo de começar o Credo. Todo o rosário, não importa qual mistério, você permanecerá ali, sofrendo com Ele, tentando não esquecer disso, não se distrair disso, não ‘dormir’ enfim”. E assim ela rezava, passando por cada mistério, cada conta, meditando sobre e retornando à cena da agonia de Cristo, até que ao chegar neste mistério doloroso específico fazia como o padre dissera: “Passe daí um tempo maior na posição de Jesus, de joelhos, apenas contemplando o suor dele se tornando gotas de sangue correndo para a Terra”.

Sentindo o sangue em suas mãos, Tereza passou ao mistério da flagelação, repassando a cena há pouco testemunhada, quando também rezava enquanto escutava o médico quebrando os ossinhos, tirando pedaço por pedaço de dentro da mãe e depositando na bandeja que agora ela mirava, chorando. Em cada Ave-Maria recitada ela segurava e erguia um dos resíduos do serviço de saúde: uma perninha, depois a outra, daí um braço, o outro, passando para o tronco desfeito em pedacinhos e, por fim, as várias partes destruídas do crânio que grudavam em seus dedos pela viscosidade branca do cérebro. À medida que a agonia aumentava, mais intensificava sua oração.

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Como enfermeira de tantos hospitais e maternidades, ajudou a dar à luz incontáveis bebês e evitando que outro tanto incontável fosse assassinado. Ainda assim, quantas vidas perdidas...

O terceiro mistério, da coroação de espinhos, era o mais difícil para Tereza. Rezar pela mãe, pelo seu arrependimento que, se e quando vier – e costuma vir mais do que se imagina –, será pleno de vergonha e humilhação, acrescidas da incompreensão dos mais próximos, que rapidamente censuram com clichês como “você não fez nada de mais”, “foi bem melhor assim”, “não se sabote”, “você não podia estragar toda a sua vida”. Tereza escutou todas essas e várias outras, inclusive de seus pais, que nem sequer permitiam que ela falasse sobre, cortando abruptamente toda tentativa dela pedindo que se ocupasse do futuro, pois o passado estaria resolvido. Jamais sentiu tamanha solidão.

Não fosse a avó, sabe-se lá... Era a única que temia a consequência da depressão. E ela tinha razão, passou pela cabeça de Tereza várias vezes a ideia. Se não fosse pela avó, quem saberia dizer se suportaria muito mais tempo a cruz? Calou por dentro, suspendendo uma das Ave-Marias na metade, com o olhar atravessando o que poderia ter sido o coração do bebê. E se deixou conduzir pela memória. Ainda é capaz de sentir o cheiro da sacristia, de quando foi apresentada ao padre João, da brincadeira com a avó dizendo que ela era jovem demais para ter uma filha tão crescida... Sorria, limpando as lágrimas com as costas da mão. Quanta saudade... De quem fora a ideia de ajudá-lo com o roseiral, da avó ou dele? Não conseguia lembrar, apenas de ter começado a ir de vez em quando, sem vontade nem força para dizer “não”. Tinha aprendido com a avó a cuidar do jardim quando criança, era esta a desculpa deles que depois passou a ser sua para poder conversar com o padre todos os dias, tomando café na cozinha pelas manhãs e falando da vida, inclusive daquela... Foi o que a salvou.

Lá se vão anos disso, não gostava de fazer as contas. Primeiro, a avó se foi, sem vê-la se formar em Enfermagem, talvez ainda contrariada com padre João por não ter ajudado a torná-la uma freira. Mas ele sabia o que fazia em suas orientações. Como freira ela faria muito, mas não o que precisava. Como enfermeira de tantos hospitais e maternidades, ajudou a dar à luz incontáveis bebês e evitando que outro tanto incontável fosse assassinado. Ainda assim, quantas vidas perdidas... A via crúcis é infindável... “Ditosas as estéreis e os seios que não geraram e os peitos que não amamentaram! Porque se isto se faz no lenho verde, que se fará no seco?”, foi o que lhe veio na última Ave-Maria do quarto mistério, mirando nas mãos um dos olhos esmagados do bebê.

Dois dias antes de padre João morrer, Tereza lhe visitou levando este rosário diferente para ser abençoado. Era importado, construído com base numa suposta aparição de Nossa Senhora a uma vidente americana que teria pedido para que fosse rezado pelos nascituros. Padre João se comovera como ela nunca antes havia visto, abençoando o terço com suas lágrimas. Desde então, é seu principal instrumento de trabalho. É no padre que pensa sempre no último mistério, da crucifixão e morte, mas desta vez a porta se abriu, com Edith entrando esbaforida: “Vem, rápido, chegou uma menina de 10 anos, está com 23 semanas... estupro, Têre...”

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Tereza deu um longo suspiro, pedindo para ficar sozinha mais alguns minutos. Terminou o rosário recolhendo os resíduos do serviço de saúde, embalando conforme as normas de higiene e descartando num dos latões de lixo hospitalar. Foram dias conturbados os que se seguiram. Sempre que isso se tornava público as coisas se tornavam mais difíceis. Não teve acesso à menina, nada pôde fazer a não ser orar intensamente. Depois de tudo estar mais uma vez consumado, Tereza voltou para casa com a alma naufragada em lágrimas. Avistou Paulinho a esperando na varanda. Seu caçula, dos cinco filhos adotados depois de ter evitado que fossem abortados, cujo aniversário era dali a três dias. Ao vê-la, o menino abriu um sorriso imenso e correu abraçá-la como se fosse um anjo do céu enviado para confortá-la. E era.