Julian (à esquerda) e Ambrose, personagens da série The Sinner, da Netflix.| Foto: Netflix
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Quanto mais as fotos e vídeos das igrejas chilenas sendo destruídas pipocavam em minhas timelines, mais meu olhar se tornava como o de Ambrose, o detetive do seriado The Sinner, produção original da Netflix. Se você já assistiu, leitor seriófilo, creio saber do que falo. Aquele olhar de fato consumado, embebido em tristeza entocando a revolta, oscilando entre o desejo de compreensão e o fascínio pelo martírio.

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(Virão spoilers da série, esteja avisado!)

Na terceira temporada, Ambrose se vê lidando com Jamie, um típico niilista nietzscheano que, embora não tivesse nenhuma agenda revolucionária como os cristofóbicos do Chile, padecia do mesmo mal tão bem retratado por Dostoiévski em seus livros, especialmente Os Demônios e Crime e Castigo. Quando você mata Deus, resta o nada. Como o nada não é nada e algo sempre há, a sede de sentido se torna desespero revoltado que ou encontra a vontade de comer revolucionária ou se frustra com o hedonismo, que é o salário de todo niilismo, que tampouco sustenta a vida.

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A segunda consequência é a de Jamie, que, por isso mesmo, não encontrando prazer no prazer, passou a testar a dor para ao menos “sentir” algo. Ambrose desceu ao abismo de Jamie na tentativa de salvá-lo, encarando no caminho seu próprio abismo, de outra natureza, mas cujo fundo é o mesmo: uma profunda solidão e incomunicabilidade com o outro. Jamie morre no fim como uma criança assustada com o escuro, segurando a mão de Ambrose como um filho que só consegue dormir com o pai ao lado. Mas só com Deus as trevas da morte se tornam comunhão de vida, algo que não é retratado no seriado, que nos leva à compreensão do drama humano, mas para na borda da sua solução: a verdade que liberta.

Quando você mata Deus, resta o nada. Como o nada não é nada e algo sempre há, a sede de sentido se torna desespero revoltado que ou encontra a vontade de comer revolucionária ou se frustra com o hedonismo

A verdade que liberta é o que dá forma às três temporadas do seriado, estruturadas conforme o gênero policial, com a busca por desvendar a motivação dos crimes costurando os episódios até que isso acontece, devolvendo luz a tudo o que se mostrou antes. E o interessante é que, em todas as temporadas até aqui, a impressão que se passa desde o início é de que se trataria de algo mais terrível, espiritual, profundo, mas com a descoberta da verdade há libertação como um exorcismo, revelando se tratar mais de uma tragédia que de maldade, como no caso de Cora, protagonista da primeira temporada.

Com isso, Ambrose fica mais parecido com Maigret, de Simenon, que de Sherlock Holmes ou outro detetive famoso da ficção, fazendo da compreensão compaixão pelos pecadores, que dão título ao seriado. Mas é um Maigret atormentado, procurando uma redenção às avessas, compreendendo e de certa forma perdoando os pecados dos seus investigados, numa tentativa de que isso resolvesse a sua culpa pessoal sem ter de encará-la de fato. Em cada temporada, Ambrose se identifica com os dramas dos assassinos, ajuda-os a compreenderem melhor a si mesmos e buscar solução, indo muito além do que seu dever exigia, especialmente no caso de Jamie. Mas não dá, por e para si, o passo que sabe ser necessário para redimi-lo da culpa que carrega desde a infância.

Este passo é dado por Julian, o menino protagonista da segunda temporada. Julian cresceu numa seita, outra das consequências de se matar Deus: qualquer um inventa um deus para chamar de “eu” e inventar uma seita qualquer em torno de si. Ao cometer o crime que cometeu, Julian não achou estivesse fazendo algo de errado, mas justificado pela “lei” do lugar em que vivia. Ao sofrer as consequências, foi aos poucos se dando conta da limitação do seu imaginário e da necessidade de reformá-lo para poder se tornar alguém, se não melhor, ao menos mentalmente são. Daí porque recusou fugir no fim, preferindo pagar pelo crime cometido do que tentar escapar por alguma sacada jurídica perfeitamente legal, mas profundamente imoral.

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Durante seu julgamento, Ambrose interviu, pedindo para falar em seu favor, dizendo que o que Julian estava fazendo, ao dizer toda a verdade e assumi-la perante a Justiça, era algo que raros ali naquela sala teriam coragem de fazer. Como ele próprio não tinha. Ao menos ainda, embora a cada temporada venha dando passos nessa direção, terminando a terceira enfim dando vazão à tristeza do seu olhar, chorando impotente diante do mal no mundo, o que me devolve às igrejas chilenas em chamas trazendo à lembrança a consoladora fala do venerável Fulton Sheen: “Os homens dizem que Cristo está morto, mas põem sentinelas em Seu túmulo. Dizem que Ele é inofensivo enquanto criança, contudo Herodes manda os seus soldados matar a Criança indefesa. A verdade é que eles odeiam porque creem – não com a fé dos redimidos, mas com a fé dos condenados”.