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Esta semana já tinha desistido de escrever. Perdi a virgindade da Covid e fiquei inútil. Dos sintomas todos, que foram passando um a um, restou um cansaço diferente, um cansaço teimoso, mas acho que não tanto quanto eu.
Acredite, para escrever estas três frases foram mais de dez horas tentando. Quando tive energia, atrapalhos da vida a sugaram. Quando a recuperei... recuperei? Não tenho conseguido trabalhar, nem escutar música direito, muito menos ler. Qualquer atenção mais ativa me esgota. Dei uma aula de 20 minutos e saí suado como se tivesse corrido uma maratona. Gravei um podcast e parecia que junho todo já foi gasto.
This Is Us é o seriado perfeito para quem está doente. Só nessa condição, sei disso, conseguiria assistir a tudo
Só o que fiz nesses últimos dias foi ficar largado diante de telas, da tevê para o celular para o notebook e vice-versa. Maratonei a primeira parte da última temporada de Stranger Things (está boa, como as anteriores), assisti a alguns filmes, ao novo show de comédia do Ricky Gervais (irregular, mas nos bons momentos é excelente), também o último de Norm MacDonald, Nada Especial, que me deixou triste. Explico.
Norm gravou seu especial em casa, durante a pandemia, sem público, apenas ele, um microfone e duas câmeras, de forma muito amadora. A falta de interação torna tudo muito estranho, fantasmal. E no fim, quando a Netflix colocou seis de seus colegas para comentar o show, a tristeza invade de vez. Porque Norm morreu em setembro do ano passado e nenhum dos humoristas sabia que ele enfrentava um câncer havia nove anos. Norm escondeu sua condição, apenas sua família sabia. A tristeza é tão nítida que até as risadas soam como lágrimas.
Fiquei com os silêncios entre as piadas do especial, com os silêncios dolorosos nas pausas da conversa dos humoristas. Combinam com os meus silêncios, o silêncio da suspensão do ritmo normal da vida, o silêncio do descanso forçado e sempre interrompido da mente inquieta. Aproveito e miro a vida com alguma distância e azedume (sou um porre quando fico doente).
Retornei. Horas depois. Que cansaço miserável. Terminei de assistir à temporada final de This Is Us, o seriado perfeito para quem está doente. Só nessa condição, sei disso, conseguiria assistir a tudo. Um dramalhão imenso contendo de tudo um pouco. É custoso assisti-lo, literalmente tudo é problematizado, quanto não politizado. Mas o divertido é que, embora progressista até o talo, no fim das contas é um dos seriados mais conservadores que a televisão americana já produziu, defensor da família, tradição e propriedade. Eu ri.
Embora progressista até o talo, no fim das contas This Is Us é um dos seriados mais conservadores que a televisão americana já produziu, defensor da família, tradição e propriedade
Não sem antes chorar, confesso. Apesar do sentimentalismo açucarado, na temporada final não precisaram apelar tanto e realizaram alguns episódios muito bem pensados, como no acerto de contas entre Kevin e Randall, o da separação de Kate e Toby (pobre Toby...), mas especialmente no fechamento, com a fala final de Jack e sua postura de contemplar a vida acontecendo, independentemente do futuro, mesmo do passado, apenas guardando e sendo guardado pela vida sendo vivida.
Essa forma da contemplação que passeia pelos tempos, enxergando significados quando nenhum parece haver, vendo a vida desabrochar o tempo todo, na saúde e na doença, transforma o silêncio em música em This Is Us, algo bem simbolizado no outro Jack, o neto daquele, que é cego e músico. Acho que ainda escreverei mais e melhor sobre o seriado; por enquanto, com o pouco de energia que a doença me permite, fico aqui a meditar sobre a explosão de vida num drama choroso sobre a morte a preencher de esperança o silêncio triste daquele especial de comédia sobre a vida. E não é que com isso até que saiu uma breve crônica?
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos