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Anos atrás, para me ajudar a viver melhor a Quaresma, publiquei por aqui algumas das meditações que fiz diariamente relendo as Confissões, de Santo Agostinho. Imaginava que seria como pedir para não ser lido; afinal, nos tempos da imprensa (o das notícias e o da cosmovisão da maioria dos jornalistas), passar semanas escrevendo sobre a mesma coisa parece ser suicídio. Por sorte o tempo de muitos leitores é outro e todo ano me surpreendo com quantos se recordam daqueles textos, pedindo-me o e-book que montei com aquelas meditações e continua disponível gratuitamente para download aos interessados.
Decidi fazer algo semelhante neste ano ao sair da missa da Quarta-Feira de Cinzas. Acho que foi o terceiro sacerdote jovem a me surpreender nos últimos meses. Todos preocupados com a liturgia, certificando-se de que os fiéis participassem corretamente de cada momento da missa, explicando o que deveriam ou não responder, como se portar, com sermões didáticos esclarecendo as leituras e, no caso deste último, das práticas para viver de fato a Quaresma, destacando o sacramento da confissão.
Ver, enfim, padres encarando a realidade da péssima formação dos católicos e assumindo que precisam explicar o básico do básico despertou minha esperança. Não que eu seja modelo de católico, bem longe disso, e por isso mesmo sofro com a dificuldade de se encontrar bons padres – se não aqueles cuja presença é a do Cristo que deveria viver neles, ao menos que não reduzam tudo a um sentimentalismo brega ou à politização insana de hoje em dia. Encontrar, então, sacerdotes que ao menos se preocupam mais com a liturgia e a formação de seu rebanho já é muito. Muito mesmo, quase milagre.
Não deveríamos ser, nós, da igreja, também algo assim, um “torso de Cristo”?
Se isso vira “moda”, quem sabe daqui a um tempo tenhamos mais imitadores de Cristo a inspirar conversões verdadeiras, especialmente dos que se dizem católicos? Eu me considero um desses necessitados de modelos de cristãos dignos do nome sendo sal e luz dentro das paróquias e principalmente fora delas. Sem eles, a Igreja deixa de ser o corpo de Cristo para se tornar mera pedra e pose. É como no famoso poema de Rilke, Torso Arcaico de Apolo, na tradução sublime de Manuel Bandeira:
Não sabemos como era a cabeça, que falta,
de pupilas amadurecidas. Porém
o torso arde ainda como um candelabro e tem,
só que meio apagada, a luz do olhar, que salta
e brilha. Se não fosse assim, a curva rara
do peito não deslumbraria, nem achar
caminho poderia um sorriso e baixar
da anca suave ao centro onde o sexo se alteara.
Não fosse assim, seria essa estátua uma mera
pedra, um desfigurado mármore, e nem já
resplandecera mais como pele de fera.
Seus limites não transporia desmedida
como uma estrela; pois ali ponto não há
que não te mire. Força é mudares de vida.
O poema é sobre o torso de Apolo esculpido cuja cabeça lhe falta como matéria, mas não como forma, e é só porque essa forma “salta e brilha” que sabemos estar diante de um corpo humano e não uma mera pedra de mármore desfigurada. Não deveríamos ser, nós, da igreja, também algo assim, um “torso de Cristo”? Mas se de nós não “salta e brilha” a forma do Cristo, não somos mais do que pedra desfigurada, sem vida verdadeira, confinados nos limites da matéria. Só quando “já não sou eu quem vive, mas Cristo quem vive em mim” que transpomos esses limites “como uma estrela; pois ali ponto não há que não te mire”.
O magistral no poema, no meu entender, está na implicação prática a que a contemplação tem de levar o espectador. Se a tradução fosse literal do alemão, ficaria “Tu deves mudar de vida”. A escolha de Bandeira na tradução soa muito melhor em português e até amplia o sentido original, melhor significando o processo da mudança que é, na verdade, uma metanoia. A beleza (que é a forma) da estátua tem força para fazer o contemplador mudar de vida. Ou seja, diante de tal força o observador não passa incólume e pode sofrer uma conversão. É o que “sofre” qualquer um diante da presença real de Cristo, é pelo que passa quem vive a Quaresma, tempo favorável para esta conversão.
Embora tenhamos toda a tradição, os símbolos, ritos, doutrinas, catecismo, igrejas, mosteiros, enfim, nada disso consegue ter força como os “torsos de Cristo” dos santos. É uma pena que nas catequeses da maioria das paróquias, verdadeiras fábricas de ateus e católicos mornos, pouca atenção se dê à vida dos santos, aos seus exemplos. As letras do catecismo, sem o espírito, pouca vida infundem, são como rascunhos em papel da estátua que nunca se constrói de fato. Conhecer os santos é conhecer Cristo em outros contextos históricos e culturais, ou seja, a mesma forma em “estátuas” diferentes, saltando e brilhando “como estrela; pois ali ponto não há que não te mire”.
É uma pena que nas catequeses da maioria das paróquias, verdadeiras fábricas de ateus e católicos mornos, pouca atenção se dê à vida dos santos
Em uma época como a nossa, de tanta distância e esquecimento do que realmente importa, é natural que os santos “tardios”, aqueles que se converteram depois de adultos e portanto “forçados” à santificação, despertem mais interesse e sejam mais próximos de nós, como Santo Agostinho, provavelmente o mais famoso de todos. Quem não se identifica com seu processo reticente de conversão, dizendo em meio à luta consigo: “Dá-me castidade e continência, mas não agora”? E como não ficar curioso por conhecer melhor as histórias de São Marcos Ji Tianxiang, viciado em ópio que nem sequer podia receber os sacramentos e foi santificado mesmo assim? Ou Santa Maria Egípcia, que fora prostituta antes de se converter e iniciar seu processo de santificação?
Para esta Quaresma, porém, não escolhi me fazer acompanhar por um santo canonizado pela Igreja, mas um monge que, se não conseguiu “chegar lá”, tentou de verdade. Trata-se de frei Maria Ludovicus, mais conhecido por seu nome de batismo, Thomas Merton. Estou a ler sua autobiografia, A Montanha dos Sete Patamares, em que conta sua história do nascimento à conversão, aos 26 anos de idade, quando entrou para o mosteiro. Nas próximas semanas espero comentá-la naquilo que é força para mudar de vida, como neste trecho:
A paisagem inteira, unificada pela igreja e por sua torre voltada para o céu, parecia dizer: Este é o sentido de todas as coisas criadas; para outro fim não fomos feitas senão para que os homens nos usem para se soerguerem até Deus e proclamarem Sua glória. Fomos moldadas em toda a nossa perfeição e cada qual de acordo com a sua própria natureza, e todas nós ordenadas e harmonizadas em conjunto para que a razão do homem e o seu amor se coadunem com este nosso elemento, com esta chave outorgada por Deus para a compreensão do todo.
Que ótima coisa é viver num lugar de tal forma amaneirado que se é forçado, a despeito de quaisquer ideias próprias, a se ficar pelo menos contemplativo! Num lugar onde pelo dia em fora os olhos têm de se voltar vezes seguidas para a casa que abriga o Cristo Sacramental!
Eu não sabia nem sequer quem era Cristo nem que Ele fosse Deus. Não tinha a mínima ideia de que existia algo que se chamava o Santíssimo Sacramento. Pensava que as igrejas fossem meros lugares onde as pessoas se reuniram para cantar alguns hinos. E todavia agora vos digo, a vós outros que sois agora o que eu fui antes, ó incrédulos, que é esse Sacramento tão só, o Cristo vivendo entre vós e sacrificado por vós, é somente Ele que sustém o nosso mundo e impede que sejamos precipitados de cabeça para baixo sem mais detença no báratro da nossa destruição eterna. E vos afirmo que existe uma força que emana desse Sacramento, uma força de luz e verdade e que penetra até mesmo nos corações daqueles que nunca ouviram nada a Seu respeito e que parecem incapazes de acreditar.
Amém!
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos