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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Torso contemporâneo de Cristo (7)

Missa da Quinta-Feira Santa celebrada pelo papa Francisco na Basílica de São Pedro.
Missa da Quinta-Feira Santa celebrada pelo papa Francisco na Basílica de São Pedro. (Foto: AFP/Vatican Media)

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Quando iniciei esta série de colunas quaresmais expliquei a razão do título escolhido, fazendo uma analogia com o famoso poema de Rilke Torso Arcaico de Apolo: “O poema é sobre o torso de Apolo esculpido cuja cabeça lhe falta como matéria, mas não como forma e é só porque essa forma ‘salta e brilha’ que sabemos que estamos diante de um corpo humano e não uma mera pedra de mármore desfigurada. Não deveríamos ser, nós, da igreja, também algo assim, um ‘torso de Cristo’? Mas se de nós não ‘salta e brilha’ a forma do Cristo, não somos mais do que pedra desfigurada, sem vida verdadeira, confinados nos limites da matéria”.

Jamais imaginei que durante esta Quaresma fosse exatamente isso que nos aconteceria, que ficaríamos confinados nos limites da matéria pelo medo da morte, tendo nossas igrejas fechadas e sacramentos não sendo fornecidos aos fiéis. Para que você, leitor de fé secular, possa ao menos ter uma pálida noção do que isso significa para um católico, imagine se os hospitais fossem fechados por causa da pandemia, sem podermos ter acesso a remédios, respiradores, UTI, com os médicos atendendo apenas por videoconferência. Impensável, certo? Pois, então, talvez você possa entender um pouco do que estão sofrendo na prática, não em hipótese, aqueles que não estão tendo acesso ao que pode salvar suas almas.

A decisão dos nossos pastores de fechar as portas das igrejas e do acesso aos sacramentos, especialmente da Eucaristia, transformou boa parte da Quaresma em uma Sexta-Feira Santa ainda mais dolorosa

Escrevo esta última coluna depois de ter assistido à missa da Ceia do Senhor celebrada pelo Santo Padre, que não teve o famoso lava-pés por causa dos riscos da pandemia. Embora seja opcional na liturgia desta missa especial, sua não realização neste momento foi muito simbólica, pois em sua homilia o papa pediu aos sacerdotes que tenham coragem para deixar Deus lhes servir. Palavras belíssimas, mas dando exemplo contrário ao que se pediu, deixando-me com uma pergunta para a qual temo a resposta: o que está a “saltar e brilhar” da igreja de hoje é a forma do Cristo?

Em verdade, a decisão dos nossos pastores de fechar as portas das igrejas e do acesso aos sacramentos, especialmente da Eucaristia, transformou boa parte da Quaresma em uma Sexta-Feira Santa ainda mais dolorosa. Em todo o ano litúrgico, somente neste dia não há missa, apenas uma solene meditação litúrgica sobre a Paixão de Cristo. Ainda assim, ela é realizada dentro das igrejas, com o sacramento da Penitência (a confissão) sendo celebrado normalmente. Não nesta Sexta-Feira Santa do ano de 2020.

Quando penso no que seria o tríduo pascal se não houvesse o Domingo da Páscoa, tremo. Da vivência da angústia e tristeza pela morte certa, passando pelo abandono de Deus e o vazio consequente e eterno. Tremo. Mas nesta Quaresma tem sido um pouco muito assim. Como em nenhuma outra este vazio se instalou antes, imperando sobre tudo o mais. E talvez só por isso consiga entender melhor o fim da autobiografia de Thomas Merton, que tem me acompanhado por aqui durante toda essa série de colunas quaresmais. Merton, depois de fazer os votos no mosteiro trapista, passou por um processo de purgação, já não sabendo mais o que estava fazendo e terminando seu escrito falando diretamente com Deus:

“Não sabia mesmo qual era a minha vocação e que vinha a ser a vocação cisterciense. (...) Estou principiando a compreender. Pois me chamaste aqui não para usar um rótulo com o qual me reconhecer e me situar em qualquer categoria. Não quero me pegar a pensar no que sou, mas no que sois. Ou antes: nem mesmo Vós quereis que me ponha a pensar muito, seja lá no que for. Pois me soerguereis acima do nível do pensamento. E se eu viver sempre procurando considerar o que sou, onde estou e por que motivo aqui me acho, como poderá ser feito esse trabalho? Não dramatizo sobremaneira tal caso. Não digo: ‘Exigistes que largasse tudo, e a tudo renunciei.’ Porque já não desejo ver nada que signifique uma distância entre mim e Vós; e se recuo e presto atenção em Vós e em mim, como se algo houvesse passado entre nós, ou de mim para Vós, inevitavelmente veria o vão entre nós e me lembraria da distância que entre nós existe. Meu Deus, é esse vão, é essa distância que me mata.”

Meu Deus, é esse vão... Esse vazio...

“Eis o único motivo por que desejo solidão... estar perdido para todas as coisas criadas, morrer para elas e para o conhecimento delas, porque só me lembram a distância em que me acho de Vós. Elas me falam de Vós: que estais distante delas muito embora permaneçais nelas. Que as fizestes e que a Vossa presença lhes sustenta o ser, e que elas Vos escondem de mim. Ah! Como quereria viver sozinho, e fora delas! O beata solitudo! Pois sabia que somente as deixando é que poderia chegar a Vós; eis porque me senti tão infeliz quando parecia que me condenáveis a permanecer nelas. Agora a minha tristeza findou, e a minha alegria está a ponto de começar: a alegria que dá júbilo em meio à mais profunda dor. Pois estou começando a compreender. Ensinastes-me, consolastes-me, e comecei outra vez a ter esperança e a aprender.”

Quando penso no que seria o tríduo pascal se não houvesse o Domingo da Páscoa, tremo

Não teria também esta dolorosa Quaresma servido para nos ensinar isso? Para nos fazer sofrer profundamente essa distância de Deus, esse vão, esse vazio, para aprendermos a procurar menos por nós mesmos, procurar menos nos torsos contemporâneos de Cristo e mais pelo Cristo mesmo que a tudo sustenta e que permanece conosco ainda que estejamos distante dEle? Não estaria nossa alegria que está prestes a começar com a Ressurreição, no domingo da Páscoa, dando desde já júbilo em meio à mais profunda dor? Não teria sido esta experiência quaresmal aquela “experiência (ou melhor, o conhecimento quase-experimental) de Deus em uma treva luminosa que é a perfeição da fé iluminando nosso eu mais profundo”, tal como Merton se refere à contemplação em um de seus escritos posteriores (A Experiência Interior), na qual conclui que tal experiência é “o ‘encontro’ do espírito com Deus em uma comunhão de amor e entendimento que é um dom do Espírito Santo e uma penetração do amor de Cristo”?

Talvez tenha sido, talvez seja. Se não isso, certamente está sendo um chamado daqueles que até “as pedras clamam”, um chamado que Merton esculpiu no torno de um de seus poemas, escrito para seu irmão morto na Segunda Guerra Mundial e que havia se convertido e batizado por ação sua semanas antes. Um poema cujos últimos versos nos servem à perfeição, com o qual encerro essa série de escritos, desejando a você, leitor irmão de fé, uma feliz e santa Páscoa. Que Nosso Senhor Jesus Cristo tenha piedade de todos nós.

Pois no naufrágio de teu Abril, Cristo jaz
Sacrificado e chora nas ruínas da minha primavera;
O Dinheiro de Suas Lágrimas cairá em tuas mãos
As tuas mãos tão fracas e inermes, para que enfim
Possas comprar o regresso à tua pátria.
O silêncio de Suas lágrimas cairá como sinos
Sobre a tua sepultura que jaz nem sei onde...
Ouve essas lágrimas, escuta esses sinos
E vem, pois te chamam deveras à casa, veementemente...

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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