| Foto: Kate Brown/Free Images
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Entendeu o porquê do número dois acompanhando o título da coluna, leitor esquecido? Sim, é a segunda parte de uma série de artigos que escreverei até a Páscoa. Se perdeu ou não lembra do primeiro, está aqui. Hoje começo a tratar da autobiografia de Thomas Merton, que nasceu em janeiro de 1915, na França, quase na fronteira com a Espanha. Seus pais eram artistas; ele, vindo da Nova Zelândia; ela, dos Estados Unidos. Ambos eram típicas pessoas modernas que, se guardavam respeito por Deus e algum sentimento religioso, por outro lado eram “livres-pensadores”. Não fosse pelo pai ter quisto, possivelmente nem sequer Thomas teria sido batizado, pois fora isso não recebeu “qualquer ensinamento formal quanto à religião”.

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Segundo entendia, conforme narra em sua autobiografia: “A única explicação que acho é supor que mamãe tinha seus pontos de vista categóricos a tal respeito. Possivelmente, considerava qualquer religião organizada muito abaixo da perfeição intelectual que exigia de seus filhos”. Por causa da Primeira Guerra Mundial, se mudaram para os Estados Unidos, onde sua mãe padeceu de um câncer que a matou. Thomas tinha então 6 anos, e a forma como conta sua reação a respeito dá excelente retrato do quão inimaginável era que um dia se tornasse um monge: “Rezar? Nem sequer me ocorreu a ideia de rezar. Quão fantástico deve parecer a um católico que uma criança de 6 anos de idade, ao descobrir que sua mãe se achava à morte, nem sequer soubesse direito como rezar por ela! Foi somente depois que me tornei católico, 20 anos mais tarde, que me ocorreu finalmente rezar por minha mãe”.

Uma das preciosidades da autobiografia de Merton é o quanto ele consegue deixar clara a diferença entre a aparência exterior e vida interior verdadeira

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Tempos depois, seu pai ficou gravemente doente, quase morrendo: “Não sei se me ocorreu ou não rezar; mas creio que nessa ocasião rezei, sim, pelo menos duas vezes, conquanto isso de crença fosse coisa que em mim pouco havia. Se rezei por meu pai, provavelmente foi apenas por um desses movimentos cegos e semi-instintivos da natureza que acodem a qualquer pessoa em tempo de crise, mesmo a um ateu, e que não provam a existência de Deus, exatamente, mas que por certo mostram que a necessidade de adorá-lO e de Lhe faz ser reconhecido é algo profundamente gravado em nossas naturezas dependentes; algo de todo inseparável de nossa própria essência”.

Quando, anos depois, estudava num liceu, na França, o pai de Thomas providenciou que recebesse instrução religiosa dada por um pastor protestante: “Não me lembro se ele punha alguma profundidade espiritual nisso; a verdade é que se empenhava em nos mostrar as lições morais óbvias que havia nesses trechos. Sinto-me grato por ter recebido ao menos esse pouco de religião num tempo em que andava bem precisado. Desde alguns anos eu só entrava numa ou noutra igreja apenas para ver os vitrais ou as abóbodas góticas, sem nenhum proveito espiritual. E quase nenhum era o proveito de agora, pois que adianta a religião sem direção espiritual, sem quaisquer meios de graça exceto uma oração eventual e rara e algum vago sermão?”

Quem dera, nas discussões religiosas imbecis de hoje em dia, houvesse mais Privats que moleques como aquele Merton de então

Foi somente por volta dos seus 15 anos, porém, morando na Inglaterra, que de fato viveu num ambiente religioso em seu colégio: “Era a primeira vez que eu via gente se ajoelhar publicamente junto da cama antes de se deitar, e a primeira vez que, junto com outros, comia depois de render graças a Deus. Creio que cerca de dois anos fui a bem dizer sinceramente religioso. Por conseguinte, também me sentia até certo ponto feliz e calmo. Não creio que nada houvesse de sobrenatural em tudo isso, conquanto tenha certeza de que tais práticas estavam atuando de certa forma em nossas almas, embora de modo obscuro e incerto. Pelo menos estávamos cumprindo nossos deveres naturais para com Deus e, portanto, satisfazendo uma necessidade natural. Mais tarde, como praticamente toda gente nesta estúpida e ímpia sociedade, eu consideraria esses dois anos como a ‘minha fase religiosa’”.

Não creio seja preciso dizer o quanto esta realidade da infância e adolescência de Thomas Merton é semelhante à de tantas pessoas na atualidade. Ainda que não seja assim com você, leitor religioso, sabe bem como é comum hoje em dia ver quem vai às igrejas apenas para fazer turismo ou cumprir tabela em eventos tornados meramente sociais, como batizados, casamentos e cultos fúnebres. Ou, também, quão comum é constatar que os atos exteriores de fé e piedade costumam ser desconectados da personalidade real de quem os pratica, com a convivência comunal, expressividade sentimental e preocupação com justiça social sendo mais importantes que a imitação de Cristo.

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Uma das preciosidades da autobiografia de Merton é o quanto ele consegue deixar clara a diferença entre essa aparência exterior e vida interior verdadeira, como, por exemplo, quando conta que a “única educação religiosa e moral de valor legítimo que cheguei a receber em criança me veio de papai; não de modo sistemático, mas de quando em vez e mais ou menos espontaneamente no decorrer de conversações comuns. Meu pai nunca teve o propósito direto e programado de me ensinar religião. Mas, se algum problema espiritual lhe vinha ao espírito, ele mo participava com maior ou menor naturalidade. E essa é a espécie de ensinamento religioso ou leigo que produz melhor efeito. ‘Um homem bom extrai bons frutos do tesouro de seu coração; e já um homem mau extrai frutos maus do tesouro ruim que é o próprio mal, pois a boca fala segundo o que jaz em abundância no coração’. E é exatamente esse falar proveniente ‘da abundância do coração’ que impressiona e produz efeito nas outras pessoas. Aguçamos o ouvido e prestamos atenção respeitosa a quem quer que se mostre sinceramente convicto do que está dizendo, mesmo que o assunto seja oposto às nossas ideias e conceitos”.

Daí a razão pela qual ele dê tanto destaque, nestas primeiras 90 páginas de A Montanha dos Sete Patamares, à experiência vivida com a família Privat, quando viveu em França. Entrou a discutir com eles sobre religião e as diferenças entre o protestantismo que vinha sendo ensinado e o catolicismo deles: “Era uma coisa terrível, assustadora e muito humilhante sentir aquele silêncio dos dois e aquela força pacífica voltada contra mim, acusando-me de separar-me deles, de isolar-me da segurança que podiam outorgar, de safar-me da proteção e força de suas vidas interiores; e isso por culpa minha, por mera obstinação, por pura ignorância, devido tão só ao meu protestantismo orgulhoso e inculto. E era mais humilhante ainda, porque eu queria que eles debatessem, e todavia desprezavam discutir; era como se compreendessem (sem que eu atinasse com isso) que a minha atitude e o meu desejo de argumentar e armar discussão religiosa implicavam numa absoluta e fundamental falta de fé, numa confiança em minha instrução e num apego aos meus próprios pontos de vista. E, mais ainda, pareciam averiguar que eu não acreditava em nada e que tudo quanto eu lhes dissesse a respeito de crença fosse mero palavreado. Todavia não me deram a entender que faziam assim por ser o assunto de somenos importância ou coisa que não merecesse a pena ser discutida com uma criança ou que devesse seguir seu curso mudando futuramente. Jamais conhecera alguém que desse à crença importância de tamanha urgência. No entanto, que poderiam eles fazer diretamente por mim? Mas alguma coisa podiam fazer, sim. E tenho certeza que fizeram, e isso me enche de contentamento, e agradeço a Deus, do fundo do coração, que aquele casal se tenha preocupado e interessado tão profundamente por mim por causa da minha falta de fé. Quem saberá quanto eu devo a essas duas formidáveis pessoas, é para mim uma questão e certeza moral que lhes devo muitas graças através de suas orações; pode muito bem ser que a graça ulterior de minha conversão e mesmo de minha vocação religiosa, eu lhas deva. Quem poderá negar ou afirmar? Tempo virá, porém, em que saberei; e faz bem esta confiança de que estarei capacitado para revê-los e então agradecer-lhes”.

Quem dera, nas discussões religiosas imbecis de hoje em dia, houvesse mais Privats que moleques como aquele Merton de então. Quem sabe, assim, tivéssemos mais exemplos de pessoas como o pai de Merton, que ao menos falam do que vem do coração, não de pensamentos emprestados.

Continuo na semana que vem.