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Se formos resumir o que fundamenta o mundo ocidental depois do Iluminismo, não creio erraria em cravar: livre pensamento. Coisa boa, coisa formosa, quem não gosta de liberdade de pensamento bom sujeito não é. Mas faça uso dessa mesma liberdade e pense comigo, leitor cartesiano: se levarmos às últimas consequências o livre pensamento, ao que chegaríamos? Um pensamento completamente livre significa que também é completamente irresponsável. Se ele é livre assim, oras, não precisa se submeter aos fatos, à realidade mesma, afinal, se fosse obrigado já não seria tão livre assim, certo? Daí porque, se for absolutamente livre, o pensamento torna-se fundamento da própria realidade do sujeito: penso, logo existo.
Conhecer a vida de Thomas Merton antes de sua conversão é se deparar com mais um exemplar de livre pensador, mas também com um excelente retrato das consequências de tentar ser assim de fato. Quando tinha 15 anos, Merton decidiu viver desta forma: “Em 1930, depois que fiz 15 anos, (...) o caminho começou a ser preparado para as minhas várias rebeliões intelectuais por uma noção súbita e muito definitiva de independência, por uma noção de minha própria individualidade que, conquanto fosse natural naquela idade, tomou um rumo morbidamente egoístico. (...) Queria pensar o que muito bem desejasse, e fazer o que muito bem alvitrasse, seguindo o meu caminho”.
Não há melhor remédio para isso do que a proximidade da morte. Eis algo perante o qual pensamento nenhum consegue ser livre. Na mesma época, o pai de Merton ficou muito doente e desenganado. Que pôde ele fazer contra essa dor e sofrimento? “Que coisa cruciantemente triste! Não se podia fazer nada. (...) Em que podia eu transformar meu sofrimento tamanho por ver papai assim? Eu e qualquer outra pessoa da família não tínhamos capacidade para extrair de tanta aflição nada de válido. Tratava-se de uma ferida aberta e hiante a que não se podia dar alívio de espécie alguma. Tinha-se de aguentar, como um animal. Estávamos na condição da maioria do mundo, na condição de criaturas sem fé e na presença da guerra, da doença, da dor, da fome, da praga, dos bombardeios, da morte. Tinha-se de aceitar, como um animal zonzo. Urgia evitar o sofrimento. Mas de que forma? Chegava-se a determinado ponto em que não era possível coisíssima nenhuma. O jeito era aceitar e estupidificar-se a fim de que não doesse demais. Mas nem assim a gente se livrava. Pois o remate era ser devorado, literalmente.”
O amor pelas igrejas, mais por suas construções que pelo que nelas está abrigado de arte, símbolos e ritos, foi algo legado a Thomas Merton pelo pai
A visita da morte é sempre ocasião de conversão, mas se isso não acontece o remédio vira veneno. Merton, porque o sofrimento “passou”, achou-se mais “vivido” do que todos que conhecia. Ao retornar aos estudos “estava convencido que era o único de toda a escola que conhecia alguma coisa a respeito da vida, incluindo o reitor”. E assim o livre pensador se consumou: “Completei a confiança em mim mesmo, garanti a opinião que tinha de mim. Já agora ninguém mais velho do que eu simbolizava a autoridade. (...) Deduzi, por consequência, que estava agora libertado de toda e qualquer autoridade, que não deveria mais dar a mínima atenção a qualquer conselho que ousassem me dar. Mesmo porque achava que isso de conselhos não passava de capa de hipocrisia ou de fraqueza, de vulgaridade ou de temor”.
Mas o que realmente acontece com esses “bichos soltos” que só confiam em si e mais nada nem ninguém? Isso, viram devotos de alguma teoria ou ideologia qualquer. É inevitável. No caso de Merton, como de tantos livres pensadores do século 20, fez de si o seu deus, da psicanálise sua metafísica e do comunismo a sua religião. Quando foi para os Estados Unidos dar sequência aos seus estudos, na Universidade Columbia, participou de grupos de jovens que pregavam a palavra marxista e coisas do gênero.
Mas aí, de novo, a morte veio dar um “olá”, com ele ficando doente e com medo dela. Daí, adivinha? “Bem quisera dar aos que acreditam em Deus uma pequena ideia do estado de alma duma criatura como a que eu era então. Mas é impossível fazer isso em termos sóbrios, diretos, medidos, de prosa. (...) minha alma estava simplesmente morta. Era um vazio, era uma espécie de vácuo espiritual (...). Assim, pois, jazia eu naquele leito, repleto de gangrena, e com a alma apodrecida pela corrupção dos meus pecados. E nem me importava sequer se ia morrer ou não. A pior coisa que pode acontecer a qualquer pessoa nessa vida é perder todo o senso de tais realidades. A pior coisa que jamais me aconteceu foi essa consumação dos meus pecados numa abominável frieza e indiferença, mesmo na presença da morte”.
Curou-se no corpo, mas não na alma. Seguiu sua vida como antes, cada vez mais cansado dela e não vendo nas pessoas em torno mais do que sinais do mesmo vazio. Tinha em torno de 21 anos quando, numa noite qualquer, no trem para Long Island, mirando as pessoas à volta, constatou: “E entre essa gente me quedava eu, cansado e tonto, acendendo o quadragésimo ou o quinquagésimo cigarro do dia para disfarçar o gosto de remorso que se grudava à minha garganta. O que mais que tudo me deprimia era a sensação de vergonha e de desespero que invadia todo o meu ser quando o sol nascia e via todos aqueles trabalhadores se dirigindo para o trabalho. Gente sadia, silenciosa, que acabava de acordar com olhos voltados já para um intento racional. Essa minha humilhação, essa certeza da minha miséria e incapacidade de vivência, me levavam à mais profunda contrição. Era a reação da natureza. Mas sempre provava que ainda havia alguma coisa moralmente viva. O termo ‘moralmente vivo’ pode obscurecer o fato de que eu estava espiritualmente morto. Desde muito que eu já estava assim”.
Tempos depois, como sempre acontece quando a vida é vazia, teve um esgotamento nervoso, sendo obrigado a ficar de repouso e com pouca força para fazer qualquer coisa. “Ali estava eu (...) entrara neste mundo que eu cuidava que ia saquear enchendo-me de todos os seus prazeres e satisfações. Fizera o que muito bem entendera, e agora acabava verificando que eu, sim, é que tinha sido saqueado; estava esvaziado, roubado e estripado. Que coisa estranha! Querendo encher-me, esvaziara-me. (...) Tal foi a morte do herói, do grande homem que eu quis ser. Exteriormente, creio, foi um grande êxito. Toda gente sabia quem eu era, em Columbia. (...) Mas interiormente, suponho que tinha muitas feridas. Devia estar sangrando mortalmente. Se a minha natureza tivesse sido mais teimosa ainda em se apegar a prazeres que me desgostavam; se eu tivesse recusado a admitir que malogrei na fútil procura da satisfação que jamais foi achada; e se a minha constituição moral e nervosa não tivesse murchado ao peso de meu próprio vazio, quem pode dizer o que acabava me acontecendo? Quem poderia dizer onde eu iria acabar? Tive de ir bem longe para dar comigo nesse beco sem saída; mas a própria angústia e o desvalimento mesmo de minha situação rapidamente me fizeram sucumbir. E caberia à minha derrota proporcionar-me ensejo para minha salvação.”
A visita da morte é sempre ocasião de conversão, mas se isso não acontece o remédio vira veneno
Salvação que já o visitara, mas ele ainda não a abraçara. Na infância, quando morou na França, o pai construiu a casa onde moraram e, nela, usou restos de ruínas de igrejas e mosteiros. As janelas da sua casa eram antigos vitrais, por exemplo. O amor pelas igrejas, mais por suas construções que pelo que nelas está abrigado de arte, símbolos e ritos, foi algo legado pelo pai. Quando, anos antes de o vazio o derrubar, em viagem a Roma visitou várias igrejas, “pela primeira vez na minha vida comecei a saber alguma coisa a respeito dessa Pessoa que os homens chamavam de Cristo. Foi uma noção obscura, mas foi um verdadeiro conhecimento d’Ele, em certo sentido mais verdadeiro do que admitiria”. Numa daquelas noites, no seu quarto do hotel, viveu uma experiência crucial para sua conversão no futuro:
“De repente tive a impressão de que papai, que já falecera havia mais dum ano, se achava ali comigo. A sensação de sua presença era tão vívida, tão real e aterradora como se ele houvesse tocado no meu braço ou falado comigo. Tal sensação não durou menos que o tempo dum relâmpago; mas nesse instante instantâneo, se assim posso dizer, fui dominado pela visão súbita e profunda da miséria e corrupção da minha alma; foi como se tivesse sido traspassado por um clarão que me fizesse ver a condição em que me encontrava. Encheu-me de terror aquilo que vi, e todo o meu ser se ergueu revoltado contra o que estava dentro de mim: minha alma quis logo livrar-se e fugir de tudo isso com uma intensidade e uma urgência diferente de tudo quanto eu sentira até então. E acho que pela primeira vez em toda a minha vida comecei realmente a rezar, e não apenas com os lábios, mas também com o intelecto e a imaginação, com todas as veras do meu ser. E rogava a Deus, esse Deus que eu nunca conhecera, que me acudisse irrompendo da treva e me ajudasse a me soltar das milhares de coisas terríveis que mantinham essa escravidão e minha vontade.
A tais rogos se juntaram muitas lágrimas que me fizeram bem, e durante todo aquele tempo; conquanto tivesse perdido a primeira sensação vívida e angustiante da presença de papai ali no meu quarto, eu o tinha na minha mente e falava tanto com ele como com Deus, como a fazê-lo de intermediário. Não quero com estas palavras que se interprete que eu pensava que ele estivesse entre os santos. Naquele tempo eu ignorava o que isso significava, e agora que sei bem hesito em dizer que pensava que ele estivesse no céu. Julgando pela recordação do que experimentei, eu diria que era ‘como se’ ele me houvesse sido mandado do purgatório.”
Mas isso, como vimos acima, foi esquecido e somente retomado anos depois quando chegou ao limite de uma vida vazia e sem sentido. Continuo na semana que vem.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos