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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Torso contemporâneo de Cristo (4)

(Foto: Rudy and Peter Skitterians/Pixabay)

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Quaresma das boas esta, hein, leitor apavorado? Se há algo de bom a ser tirado dessa pandemia e isolamento social a que estamos sendo submetidos ou nos submetendo é isso: fomos arrastados para o Getsêmani, o jardim no Monte das Oliveiras onde Cristo chorou lágrimas de sangue pelo medo e angústia da morte próxima. Essa angústia, para a qual a Quaresma serve de preparação e que vivenciamos na Sexta-Feira Santa, com a pandemia atual já está acontecendo muito antes.

Não há quem, na iminência da morte, não acabe voltando seus olhos para Deus. Ainda que não implore seja poupado ou salvo, certamente o pânico intelectual se instala: “se tiver um depois eu me ferrei...” Como diz o ditado popular, não existe ateu quando o avião está caindo. É por isso que a proximidade da morte ou a meditação sobre ela são ocasião de conversão, ainda que à revelia do desejo e da vontade. Sem isso, dificilmente as conversões se completam ou, se efetivadas, levam à uma verdadeira vida espiritual.

Eis mais uma razão para prestarmos atenção no processo de conversão de Thomas Merton. Seu primeiro passo foi apenas de ordem intelectual. Thomas procurou ler mais sobre espiritualidade, especialmente oriental, tendo inclusive convivido com um monge hindu, seu encantamento com Huxley e Blake, levaram-no a concluir, intelectualmente: “eu me achava ciente do fato de que o único modo de vida era viver num mundo onde fosse densa a presença e a realidade de Deus. Dizer isto é dizer muita coisa; e não quero dizer por um modo que transmita mais do que a verdade. Terei de limitar a afirmação dizendo que isso constituiu para mim mais uma averiguação intelectual do que algo mais, sem haver ainda ferido as raízes de minha vontade. A vida da alma não é conhecimento, é amor, visto que o amor é o ato de suprema faculdade, o querer, com o que o homem fica formalmente unido ao termo de todos os seus esforços – mediante o qual se torna um com Deus” (grifos meus).

A proximidade da morte ou a meditação sobre ela são ocasião de conversão, ainda que à revelia do desejo e da vontade

E foi por essa via que, deparando-se com o livro O Espírito da Filosofia Medieval, de Gilson, em torno de um ano e meio depois deu novo passo para ir do intelecto à ação, ou seja, passando primeiro pelo desejo de se unir a Deus: “Não somente aceitei tudo isso intelectualmente, como comecei a desejar. E não somente comecei a desejar, como comecei a agir eficazmente: tive logo vontade de tomar as necessárias providências para completar essa união, essa paz. Desejei logo dedicar minha vida a Deus, ao Seu serviço. (...) Oh, quão cego, frouxo e doente eu estava, muito embora cuidasse estar vendo para onde ia e já conhecesse o caminho pela metade! Quanto nos iludimos frequentemente só por havermos colhido noções claras nos livros! Fazem-nos pensar que realmente compreendemos coisas das quais não temos de modo algum nenhum conhecimento! Lembro-me de como podia falar cheio de citações e entusiasmos sobre o misticismo e o conhecimento experimental de Deus, enquanto isso pondo brasa na discussão com os fogos de doses de scotch com soda!”

Quem nunca, leitor intelectual convertido? Os primórdios de conversões de intelectuais costumam ser muito semelhantes. Mas é Deus quem conduz, não nossa mente. Por isso, um belo dia... “Será difícil me esquecer o que senti naquele dia. Primeiramente havia aquela solicitação límpida, suave, mas forte conquanto gentil, que me dizia: ‘Vai à missa! Vai assistir à missa!’ Era algo bem novo e estranho essa voz que parecia me impelir; essa convicção firme e crescente, bem íntima, do que era mister que eu fizesse. Havia tal suavidade singela, que eu não podia deixar de me dar conta. E, quando me rendi, ela não se exultou sobre mim pisando-me com pressa incontida como sua presa, mas me transportou para a frente com serenidade e sóbria direção. Não quero dizer que minhas emoções se renderam a isso, de pronto. De fato ainda sentia certo receio de entrar numa igreja católica deliberadamente e de lá, em meio a muita gente, me instalar num genuflexório e me expor aos misteriosos perigos dessa estranha e poderosa coisa a que eles chamavam a ‘missa’.”

Ele foi, e, quando Deus move, não para mais. Dias depois: “Caía uma chuva mansa na relva das quadras de tênis do outro lado da rua, e o enorme prédio arruinado da antiga biblioteca se destacava com seu tom cinzento como uma sobrancelha de ciclope vincada sobre South Field. Abri o livro sobre Gerard Manley Hopkins. Li o capítulo que falava de Hopkins em Balliol, em Oxford; já estava pensando em se fazer católico; escrevia cartas a Newman (que então ainda não era cardeal) a respeito de se tornar católico. Inesperadamente, não sei o quê começou a me alvoroçar, a me impelir e a me pôr agitado. E era como se de toda essa movimentação saísse uma voz, que dizia: ‘Que é que está esperando? Que faz sentado aí? Por que motivo hesita ainda? Pois não sabe o que deve fazer? Então, por que não age?’ Remexi-me na cadeira, acendi um cigarro, olhei através da janela para a chuva que caía, procurei calar aquela voz, pensando comigo mesmo: ‘Nada de estabanamento! Deixe de tolice. Isso não é racional. Vá lendo o livro...’ E eu lia. Hopkins escrevia a Newman, então em Birmingham, sobre suas indecisões. E a voz dentro de mim outra vez: ‘Então, continua sentado aí? Não adianta hesitar por mais tempo. Levante-se, saia!’ Levantei-me, comecei a andar afoitamente pelo quarto, pensando: ‘É absurdo. Aliás, a esta hora o padre Ford não estará em casa. Perderia tempo pois não o encontraria.’ Hopkins escrevia a Newman. Este lhe respondia que fosse vê-lo em Birmingham... De súbito, não suportei mais. Larguei o livro, enfiei o capote, desci depressa a escada, atravessei a rua, caminhei ao longo da paliçada cinzenta rumo à Broadway, sob a chuva leve. E então, dentro de mim, qualquer coisa começou a cantar... dando-me paz, dando-me fortaleza, dando-me convicção.”

E assim Thomas Merton se tornou católico, sendo batizado semanas depois, começando, então, como ele mesmo descreveu, a sua subida pelos sete patamares do Purgatório, o que será assunto para a coluna da semana que vem. Para finalizar esta, vale transcrever o que o convertido disse sobre esses impulsos e vozes que desde dentro o moveram à conversão, à Igreja, à união com Deus:

“A nossa natureza, que é um dom livre de Deus, nos foi dada para ser aperfeiçoada e encarecida por um outro dom livre gratuito. Esse dom espontâneo é a ‘graça santificadora’. (...) Mesmo que um homem tivesse chegado no pináculo abstrato da perfeição natural, o trabalho de Deus não teria chegado à metade; estaria ainda apenas no início, porque o real trabalho é trabalho da graça, das virtudes infusas e dos dons do Espírito Santo. Que é a ‘graça’? É a própria vida de Deus compartilhada por nós. A vida de Deus é o Amor. Deus caritas est. Pela graças ficamos capacitados a partilhar do amor infinitamente específico d’Aquele que é uma realidade tão pura que de nada carece e que por conseguinte não pode, concebivelmente, explorar nada para fins egoístas. (...) Quando um raio luminoso fere um cristal, dá uma nova qualidade ao cristal. Quando o amor infinitamente desinteressado de Deus bate numa alma humana, acontece o mesmo fenômeno. E isso é a vida chamada a graça santificadora.”

Amém.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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