Quando cai a ficha de que só interessa fazer a vontade de Deus, como descobri-la? Quem quer que tenha feito um mísero movimento em direção a Ele se deparou com esse drama que, por consequência, gera uma paralisia momentânea por medo de errar. Com Thomas Merton não foi diferente, depois de se deparar com seu orgulho na primeira escarpa da montanha do purgatório.
O seu desejo, a sua vontade, era se tornar monge cartuxo. Mas como não havia mosteiros cartuxos nos EUA à época e a Europa estava engolida pela Segunda Guerra Mundial, dessa tentação escapou, qual seja, de fazer a sua vontade achando que seria a de Deus. Restava-lhe entrar para outra ordem, como a trapista, mais próxima dos cartuxos. E aí a paralisia aconteceu, com ele não se permitindo alimentar isso por achar que seria apenas a sua vontade. O que restava como caminho de vida?
“Eu achava que se permanecesse no mundo, a minha vocação era, antes de tudo, escrever, depois ensinar. Quanto a trabalhar assim na Casa da Amizade, constituía pois uma terceira hipótese, nessa ordem de fatos.” A Casa da Amizade era uma obra beneficente de uma baronesa russa que instalou no bairro do Harlem, em Nova York, uma casa para auxílio dos negros pobres ali residentes para se contrapor à ação dos comunistas que assim estavam conquistando proletários no mundo todo, fazendo a caridade que a Igreja sempre fizera e muitos de seus fiéis deixaram de fazer, abrindo espaço para outras “agendas” que instrumentalizavam a caridade em prol de outros fins que não o amor ao próximo.
Quando cai a ficha de que só interessa fazer a vontade de Deus, como descobri-la?
Havia, portanto, um caminho contemplativo, tornando-se monge trapista; um caminho mundano, mantendo-se como escritor e professor; e um caminho mais ativo do que contemplativo nas coisas da Igreja, participando da Casa da Amizade. Qual seria a vontade de Deus para Merton? Sua primeira decisão foi prudente: “Até obter uma luz mais definitiva, permaneceria onde me achava, isto é, no Colégio de São Boaventura”. Mas também paralisante; era um escolher não escolher, no fundo, esperando que Deus o iluminasse sem deixar dúvidas, o que continuava tendo muito de orgulho, não de fé. Nessas horas costumamos mistificar a mística. Quem, se de fato convertido e em começo de caminhada, não apelou para a “técnica” de abrir aleatoriamente a Bíblia e achar que a primeira coisa que aparece é Deus respondendo o que você perguntou? Foi o que Merton fez:
“No meio desse conflito, de repente me veio uma ideia que mostra que eu não me achava muito avançado na vida espiritual. Pensei em rezar, em pedir a Deus que me esclarecesse sobre o que devia fazer ou me mostrasse a solução do meu caso através de uma demonstração categórica das Escrituras. Era o velho vezo de abrir a Bíblia e pôr o dedo às cegas a página e ler a frase designada como resposta. Santos houve que fizeram isso. No mais das vezes, porém, se trata de expediente de velhotas supersticiosas. Não sou santo, e não duvido que houvesse um elemento de superstição no meu ato. Fosse como fosse, rezei, abri a Bíblia, pus o dedo em certo ponto da página, inteiramente ao acaso, e pensei comigo: ‘O que sair, aceitarei’. Li. A resposta praticamente me estarreceu. As palavras eram: ‘Ecce eris tacens. Eis que ficarás mudo.’ Era o vigésimo verso do primeiro capítulo de São Lucas, em que o anjo fala a Zacarias, pai de João Batista. Tacens: não podia haver palavra mais próxima da palavra ‘trapista’, percorrendo-se a Bíblia inteira, no que me interessava no caso, pois que para mim, bem como para muitas outras pessoas, a palavra ‘trapista’ significa ‘silêncio’.”
Mas poderia significar também, ô Thomas, que Deus estava mandando você ficar quieto e confiar no tempo dEle dar a resposta. Foi o que se deu conta em seguida e percebeu que poderia interpretar de várias formas o verso bíblico. E agora? E agora era rezar, pedir, caminhar na vida espiritual e cumprir seus deveres de estado como professor e mesmo escritor. Assim fez, seguindo suas leituras espirituais e sendo surpreendido por Deus ao começar a se interessar por Santa Teresinha, a quem nunca se sentiu atraído por desprezar a “mentalidade da classe média francesa do fim do século 19” que em boa medida ainda se mantinha viva e da qual ele descendia: “E eis o que me enterneceu nela como fato sobremaneira fenomenal: ela se tornou santa não por haver fugido da classe média; não por haver abjurado, desprezado e amaldiçoado a classe média ou o ambiente em que havia crescido. Pelo contrário: apegou-se a ele tanto quanto uma pessoa se pode apegar a isso e ser bom espécime da ordem carmelita. Ela conservou tudo quanto era burguês à sua volta e não incompatível de todo com sua vocação (...) E ela não só se tornou santa como a alma mais santa que houve na Igreja nestes 300 anos... maior até mesmo, sob certos aspectos, do que os dois tremendos reformadores de sua ordem, São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila. Descobrir tudo isso foi certamente uma das maiores e mais salutares humilhações que já tive na minha vida.”
O que significa conhecer um grande santo? Como bem explicou Merton neste livro, é uma experiência “inteiramente diversa da descoberta de uma nova estrela por um fã de cinema. Que pode um tal fã fazer ante o seu novo ídolo? Pôr-se a olhar, deslumbrado, para a sua fotografia até ficar vesgo... Nada mais. Já os santos, porém, não são meros objetos inanimados para a contemplação. Tornam-se nossos amigos, compartilham da nossa amizade, respondem, dão-nos inequívocas provas de amor por nós pelas graças que recebemos através deles. E assim, agora que eu tinha essa grande amizade nova no céu, era inevitável que ela começasse a influenciar a minha vida”.
A primeira influência foi ser atraído para mais perto da baronesa russa, descobrindo que ela não apenas fazia o trabalho de caridade com os pobres, mas também andava a pregar entre frades e padres, fazendo também um apostolado não oficial “ensinando padres a rezar missa”, como diz o ditado popular. E o que ela tinha que frades e sacerdotes não possuíam? “Uma coisa: estava cheia do amor de Deus; a sua oração, o sacrifício e a pobreza total haviam enchido a sua alma com qualquer coisa que, segundo parecia, aqueles dois frades que a tinham ido esperar tinham procurado em vão nos retiros hirtos e convencionais, meramente instrutivos, a que tinham assistido”.
Decidiu abandonar seu ofício de professor e ir viver na Casa da Amizade. Mas era Deus quem estava no comando, não ele. Por isso, mal chegou na tal casa foi participar de um retiro num convento, no qual, depois de três dias, veio-lhe repentinamente uma “vívida convicção: ‘Chegou a vez de partir deveras. Vou ser trapista.’ Donde me veio tal determinação? Tudo quanto sei foi que ela se apresentou de forma categórica, nítida e irresistível, poderosa e clara. (...) Contudo, no meio, continuava a hesitação: aquela história antiga. Mas agora era impossível adiar. Era preciso acabar duma vez para sempre, decidir, conversar com alguém que pudesse opinar”.
O que significa conhecer um grande santo? Como bem explicou Merton, é uma experiência “inteiramente diversa da descoberta de uma nova estrela por um fã de cinema"
E saiu a procurar um dos freis em quem confiava, porém “ao chegar a dois metros da porta foi como se alguém me detivesse com mãos físicas. Algo se opôs à minha vontade. Não podia dar mais um passo, mesmo que quisesse. Dei como que um empurrão no suposto obstáculo, que era talvez um demônio, virei-me e voltei para a alameda. Meus passos ressoavam enquanto eu prosseguia por sob as árvores silenciosas. Não creio que jamais tenha havido na minha vida um momento em que minha alma sentisse angústia tamanha e mais aguda do que então. Vinha rezando desde antes, de modo que não posso dizer que me pus a rezar quando cheguei diante da ermida [de Santa Teresinha, que estava instalada naquela alameda]; mas meus rogos se tornaram mais nítidos e imediatos. ‘Ajudai-me por favor. Que devo eu fazer? Não posso continuar assim. Mostrai-me o caminho!’ Era como se necessitasse de mais informações ou contasse com uma espécie de sinal! E acrescentei, dirigindo-me a Santa Teresinha: ‘Mostrai-me o que devo fazer. Se eu entrar para o mosteiro, serei vosso monge. Mostrai-me o caminho!’ (...) E nisto que acabei de proferir tais palavras, dei de súbito com a presença difusa das árvores, dos bosques, dos montes, do vento fresco da noite. E, bem mais nítido do que qualquer dessas realidades óbvias, comecei a ouvir, na minha imaginação, o grande sinal de Gethsemani [o mosteiro trapista] badalando na alta torre cinzenta... E badalando tão perto como se estivesse ali na colina mais próxima. Tal impressão me deixou ofegante, e tive que pensar duas vezes para perceber que era apenas a minha imaginação que me fazia supor que o sino da abadia trapista estava tocando na escuridão. Todavia, segundo calculei depois quando voltei ao estado normal, me lembrei que era exatamente nessa hora que o sino tocava todas as noites já no fim de Completas, para a toada da Salve Rainha. Aquele sino parecia-me dizer para onde eu devia ir. Chamava-me para casa.”
E para casa Thomas Merton voltou, tornando-se monge trapista e assim permanecendo até o fim de sua vida. Ainda falta comentar aqui o epílogo de sua autobiografia, encerrando essa série de colunas quaresmais em preparação à Páscoa. Quando a comecei, a pandemia do medo da Covid-19 ainda não tinha se instalado em nossas mentes e corações, arrastando-nos para o sentido e significado de toda Quaresma, ainda que você não faça a menor ideia do que seja isso, leitor descristianizado. Mas ela é sempre um chamado para voltarmos para casa. O que significa dizer deixar Deus tomar posse do que é dEle, o coração e alma de cada um. Que a sua entrada triunfal em Jerusalém neste próximo Domingo de Ramos seja também uma entrada triunfal no seu coração, que o sofrimento que todos estamos padecendo, que toda a incerteza sobre o que o futuro nos reserva seja o chão da Via Crúcis. Porque o mundo pode não ter salvação, mas nossas almas têm. Basta permitir que Deus mostre o caminho e todos os caminhos levam da cruz à ressurreição em Nosso Senhor Jesus Cristo.
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