Comecei a assistir ao documentário produzido pelo casal Obama, Trabalho, inspirado no livro Working, de Studs Terkel, lançado em 1974. Segundo a descrição na Netflix, o filme “explora as maneiras pelas quais encontramos significado em nosso trabalho e como nossas experiências e lutas nos conectam em um nível humano”. Ou, nas palavras do próprio Obama logo no início: “O que torna um bom trabalho... bom?”
OK, Seu Obama, fiquei curioso. Chegando ao fim do primeiro episódio (são quatro ao todo), uma das entrevistadas, fazendo compras num supermercado com o ex-presidente, perguntou de repente: “Você está em paz?” Tomei um susto, confesso. E acho que surpreendeu também ao ex-presidente, que deu uma resposta que não foi resposta, mais um minidiscurso político dizendo que em sua vida estava tudo bem, mas que se preocupava com as novas gerações.
Mas a curiosidade dela me pareceu outra, de saber algo que não se resume ao momento presente ou preocupações de futuro, mas uma espécie de avaliação do passado, do qual o ex-presidente se esquivou, com habilidade. A pergunta me pareceu justamente querer saber dele se o que havia feito enquanto presidente lhe permitia sentir-se em paz, a paz de quem fez tudo que podia, ainda que não tenha conseguido tudo que desejasse.
Na conversa com a mulher, Obama disse algo interessante: que a geração de sua mãe não via no trabalho algo que precisaria ser significativo, ter algum sentido de realização, mas que servia para pagar as contas e pronto
Será que haveria outras perguntas assim, aparecendo “do nada” e aparentemente sem relação com o assunto do documentário? Pronto, lá fui eu maratonar os episódios. E vale a pena, achei melhor do que esperava. Acompanhamos trabalhadores de algumas empresas, dos prestadores de serviço na base até os CEOs, como são chamados hoje os chefes de anteontem.
A nítida intenção, como já revelado na descrição acima, foi a de mostrar como todos estão conectados por meio de suas funções, como são interdependentes, apesar de vários não enxergarem isso, propondo que uma tomada de consciência disso reforçaria a confiança de uns nos outros, criando uma sociedade melhor. Faz sentido não só em teoria, como na realidade mostrada no documentário. Ponto pro Seu Obama.
Aliás, Obama é uma das melhores coisas no filme. Na conversa com aquela mesma mulher, que é da classe baixa, ele disse algo interessante: que a geração de sua mãe não via no trabalho algo que precisaria ser significativo, ter algum sentido de realização, mas que servia para pagar as contas e pronto. Algo que, hoje em dia, seria diferente, principalmente para a geração de millennials, que já entram no mercado de trabalho procurando algo mais do que isso.
Não sou millennial, mas me identifiquei. Nunca consegui me contentar com pagar as contas, sempre procurando esse algo a mais que não sabia bem o que seria, salvo que não era dinheiro, poder ou fama. Sempre trabalhei na sua busca, até que encontrei. Hoje, sinto-me realizado, independentemente de dinheiro, que paga minhas contas, mas não me deixou rico (e se deixar, amém, mas não vivo para isso); poder, que não tenho nem desejo; e fama, que não é a que você está pensando, mas um reconhecimento sincero pelo trabalho prestado, algo que, graças a Deus, tenho tido mais do que mereço ou esperava.
OK, realizado, mas e a paz, eu sinto? A pergunta da moça realmente me pegou. Minha vontade era de perguntar a ela se estava em paz com toda sua dedicação e esforço para trabalhar e conseguir dar uma vida digna a sua filha. Nesse primeiro episódio, dos trabalhadores prestadores de serviços mais básicos, os do “chão de fábrica” que dificilmente conseguem mais que pagar as contas, talvez essa paz não possa ser mais do que a presença de uma realização que não é a de sonhos ou grandes conquistas, mas a de quem fez ou faz o que é possível diante das circunstâncias e possibilidades concretas.
Mas, para alguém de classe média, na qual me incluo, retratada nos segundo e terceiro episódios, essa paz parece insuficiente. Aqui, há condição real de escolhas, ainda que mínimas, para além de trabalhar para pagar as contas. Aquela paz, então, exige algo mais, uma confirmação do acerto na escolha. Sem isso, a dúvida impera: “Será que é isso que eu deveria estar fazendo? Será que eu escolhi certo?” Muito da chamada crise da meia-idade (perceba que isso é coisa de classe média e alta) decorre dessa incerteza somada ao fato de que não há mais tempo hábil para grandes mudanças de rumo na vida.
No topo, o desafio da manutenção e crescimento, somado ao tamanho da responsabilidade, costuma transformar a vida numa competição incessante e egoísta que, no fim das contas, transforma o sujeito em escravo do que conquistou
E para os verdadeiramente ricos, como funciona? No último episódio, chegamos ao topo, aos chefes, quando aí o desafio da manutenção e crescimento, somado ao tamanho da responsabilidade, costuma transformar a vida numa competição incessante e egoísta que, no fim das contas, transforma o sujeito em escravo do que conquistou. Para escapar disso, por terem muito mais condições de ação, trata-se de fazer algo maior pela sociedade, cultura, o mundo. É o caso do Seu Obama.
Por isso que a pergunta que um dos CEOs entrevistados lhe fez sobre se preocupava-se com a polarização política e social atual tem tudo a ver com o seu trabalho. O ex-presidente respondeu que é sua maior preocupação no momento. Aí lembrei da pergunta da moça no primeiro episódio...
Se você lembrar que quem substituiu Obama na presidência norte-americana foi Donald Trump, praticamente sua antítese, como não se sentir minimamente “culpado” por isso? Afinal, se Seu Obama foi tão bem-sucedido na presidência, segundo a propaganda midiática em torno dele tenta convencer, como pôde um adversário outsider ridicularizado por todos, inclusive por ele, ter vencido? Como, portanto, não se sentir também responsável pela polarização existente? É... Que pergunta boa a da moça, não?