Líamos Crime e Castigo, de Dostoievski. Fazia a mediação da leitura do livro pelo grupo, um de meus trabalhos mais gratificantes em parceria com uma agência de viagens personalizadas. O objetivo é fazer uma viagem literária, conhecer países, cidades, lugares através da literatura. O grupo escolhe o destino e eu saio a pesquisar autores locais ou romances cuja história se passa por lá para lermos. Junto à leitura, a equipe da agência sempre procura (e encontra) pessoas que moram, ou moraram, ou conhecem de perto o lugar e são convidadas para nos contar sua experiência. É sempre enriquecedor.
Conheci, por exemplo, dois dos cinco tchecos morando em Curitiba, médicos cubanos proibidos de voltar ao seu país natal, um pracinha da Segunda Guerra, um padre vietnamita que escapou num barquinho do regime comunista de Ho Chi Minh, um militar peruano que fazia a segurança dos filhos de Fujimori e hoje é um conhecido chef de cozinha aqui na capital paranaense, dentre outros. Mas nenhum me surpreendeu mais que o convidado para falar sobre a Rússia. Sabíamos apenas que se chamava João, que havia morado em Moscou por mais de uma década, a partir dos anos 1970, e viria nos contar sua história. E assim ele a começou: “Então, meu nome é Antônio João Ribeiro Prestes, sou um dos filhos do Luiz Carlos Prestes que talvez vocês conheçam”.
Tomei um susto. Como? Filho do Luiz Carlos Prestes, o maior líder comunista do país? O Cavaleiro da Esperança? Sim, era ele mesmo. Se pudesse, teria passado horas entupindo João de perguntas naquele dia. Mas me contive, preferindo muito mais escutar o que ele queria dizer. Dos filhos de Prestes com Maria Prestes (pseudônimo de Altamira Rodrigues Sobral), João é o mais velho dos sete que o casal teve (Prestes teve também uma filha do relacionamento anterior com Olga Benário; e Maria, outros dois meninos do seu primeiro casamento), mas só foi saber que Prestes era seu pai quando foram para o exílio na União Soviética, quando tinha 16 anos, em 1970. Antes, seu pai vivia como clandestino escondido, e para preservar a todos disseram que ele era um tio a quem chamavam de “Velho”. Somente na segurança de Moscou é que souberam que o tio era, na verdade, o pai.
No documentário O Velho – A História de Luiz Carlos Prestes, João e outros irmãos deram depoimentos, contando um pouco da relação difícil, distante com o pai, por força das circunstâncias. Boa parte da vida Prestes passou preso, ou clandestino, ou no exílio. Mesmo quando estava perto dos filhos, Prestes mantinha uma rotina rígida de trabalho, acordando todo dia às 5 horas da manhã e passando o dia em seu gabinete, no máximo cuidando das flores no jardim, possivelmente seu hobby. Ou seja, mesmo presente, estava ausente. Uma das filhas disse que tudo que ele fazia quando clandestino era ficar na biblioteca trancado lendo livros. Prestes amava a literatura e esse amor passou aos filhos. Ao menos a João, cujo amor pelos livros é evidente. Leu tudo o que pôde da literatura russa, até traduziu alguma coisa (se a memória não está me traindo).
Para minha sorte, João retornou outras duas vezes, participando de outros grupos criados em razão do sucesso daquele primeiro, sempre gostando de falar do que estávamos a ler. A última faz poucas semanas. Num dos grupos estamos lendo O Homem que Amava os Cachorros, de Leonardo Padura, autor de que João gosta bastante. Trata-se de um romance histórico centrado no assassinato de Trotski por Ramòn Mercader, que João chegou a conhecer em Moscou, pois no prédio em que ficaram havia muitos comunistas espanhóis que lutaram na Guerra Civil Espanhola. Perguntei se havia assistido ao seriado Trotski, da Netflix, bastante badalado, mas do qual não consegui ir além do segundo episódio, achando a estética terrível, uma mistura de novela mexicana com ritmo de filme de ação americano e trilha de ficção científica. Ele tampouco gostou, achando ridículo terem retratado Trotski como fizeram, desistindo já no primeiro: “Ele não era daquele jeito”. E Ramòn, era daquele jeito? Não sabia dizer, apenas o conheceu velhinho, nos encontros esporádicos que os espanhóis realizavam no seu prédio.
Quis saber também sobre Chernobyl, minissérie recém-lançada pela HBO que vem sendo festejada como das melhores coisas já feitas na tevê (discordo, a propósito; é boa, mas menos, gente, menos). Ainda não assistiu, mas estava na Rússia quando da tragédia e confirmou o que a série retrata: como o governo mentiu para a população. Falar nisso, é claro que perguntamos mais sobre como foi viver lá, viver assim, morar no totalitarismo soviético. Reconhece que eram privilegiados por causa da posição do pai, não tendo contato com o pior do comunismo. Ao contrário, souberam aproveitar a parte boa. Sua mãe, por exemplo, não hesita em dizer que os anos vividos lá foram os melhores de toda sua vida. João, por sua vez, formou-se engenheiro mecânico na União Soviética, casou e teve três filhos. Depois, separou-se e voltou a se casar, desta vez com uma brasileira, com quem tem uma filha, e moram em Curitiba.
Você talvez esteja curioso para saber, leitor, se conversamos sobre política brasileira. Sim, mas pouco, graças a Deus. Todo meu interesse sobre isso se desfez quando João contou que, quando da anistia política, em 1979, voltou ao Brasil, indo trabalhar em São Bernardo do Campo, em São Paulo, participando do movimento sindicalista donde surgiu o PT. Foi um momento decisivo em sua vida, quase entrando para a política. Mas não o fez. E não o fez em respeito ao pai. João saiu de São Bernardo e foi conversar com o pai, que morava no Rio de Janeiro, para falar sobre isso. Foi uma conversa difícil, pois o pai era frontalmente contra o PT, não considerava o partido revolucionário o suficiente, aquelas coisas de comunista raiz. João se viu numa encruzilhada existencial, muito mais grave que uma questão político-ideológica: entrava na política, indo contra o pai, ou se aliava com o pai, indo contra o que acreditava.
Qual foi a escolha de João? A melhor de todas: desistiu da política. Não conseguiria ir contra o que acreditava, mas tampouco conseguiria ir contra o pai, preferindo voltar à União Soviética e lá construir sua vida, como de fato fez. Nem precisei perguntar se se arrependia, é nítido que não. Quando se honra pai e mãe, não há do que se arrepender. Sobre discípulos do pai, seus possíveis herdeiros políticos, João acredita que não os há. Considera que todo homem de personalidade tão forte como era seu pai acaba por criar um deserto à sua volta. De fato, é o que parece ter acontecido no fim da vida do “Velho” e depois de sua morte também. No documentário citado acima, João aparece para falar dele, medindo as palavras, pensando bastante antes de dizer algo, como continua fazendo hoje em dia. Então, concluiu: “Eu acho que meu pai teve uma vida muito solitária”. Talvez seu pai tenha sido mais parecido com o homem que amava os cachorros do que se poderia pensar. E, já que falamos em livros, termino com um trechinho desta obra-prima de Padura:
“Embora tenha tentado evitar, e tenha me agitado e negado, enquanto lia fui sentindo como era invadido pela compaixão. Mas só por Ivan, só por meu amigo, porque ele sim a merece – e muita: merece-a como todas as vítimas, como todas as trágicas criaturas cujo destino é dirigido por forças superiores que as ultrapassam e as manipulam até as transformarem em merda. Essa foi a nossa sina coletiva, e que Trotski vá para a puta que o pariu se, com seu fanatismo obcecado e seu complexo de ser histórico, não acreditava que existissem tragédias pessoais, mas apenas as mudanças de etapas sociais e supra-humanas. E as pessoas? Algum deles pensou alguma vez nas pessoas? Perguntaram-me, perguntaram a Iván, se concordávamos em adiar sonhos, vida e todo o resto até que se evaporassem (sonhos, vida e o raio que o parta) no cansaço histórico e na utopia pervertida? Não penso muito, porque poderia me arrepender.”