Talvez a culminação do que chamamos de “mundo moderno” esteja na famosa tríade da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. A primeira, ao menos no mundo ocidental, foi conquistada de forma mais ampla. Hoje, se você quiser ser um tatu-bolinha, quem poderia dizer que você não é? Seu corpo, suas regras.
Em nome da segunda, agigantamos o Estado, colhendo direitos, tiranias, revoluções e guerras; enquanto a terceira não passou de uma esperança transformada em fetiche, cujo hino é Imagine e cuja consequência veio na forma de uma pandemia de depressão rodeada de seitas por todos os lados.
Uma de minhas curiosidades com a virtualização da vida era saber se e como funcionariam as seitas no mundo digital. Será possível um líder carismático exercer seu poder e controle à distância, pelos zooms da vida? Será que, com o acesso facilitado à informação, teria como se construir um ambiente tão fechado (que esses líderes chamam de “seguro”) e sem oposições?
A loucura de uma seita só se torna transparente depois que ela é desmascarada
A segunda pergunta já foi respondida; afinal, estamos todos em alguma “bolha”, não? Pode até não ser uma seita, mas que está facinho, facinho de se tornar uma, ah, isso está! Já da primeira obtive respostas descobrindo que existem também as “seitas digitais”, como a Twin Flames, que é objeto de duas séries documentais lançadas recentemente: uma pela Netflix, chamada Fugindo do Twin Flames, e a outra disponível na Amazon Prime, chamada Procura-se desesperadamente uma alma gêmea.
Essas duas últimas palavrinhas (alma gêmea), quando unidas, já dizem quase tudo do que se trata o Twin Flames: um projeto de um casal que promete fazer a pessoa encontrar a sua “alma gêmea”. O documentário da Netflix, embora seja bom, é falho para apresentar o que convencia (convence, porque segue existindo) as pessoas a acreditarem no casal Jeff e Shaleia. Já parte do ponto de vista do que fez a Twin Flames ser uma seita, coisa que, por óbvio, não foi a razão pela qual as pessoas lá entraram.
O porém desta abordagem é que o espectador já começa achando inacreditável que aquelas pessoas tenham “caído nessa”, ficando com pena das vítimas, mas no fundo as achando idiotas, crente de que jamais seria enganado como elas foram. Mas a loucura de uma seita só se torna transparente depois que ela é desmascarada. É como a série da Amazon Prime faz, apresentando o projeto tal como ele era e, a partir dele mesmo, mostrando a seita que se tornou.
Se me permite, sugiro assistir ambas as séries como uma coisa só. Recomendo começar pelos dois primeiros episódios da Amazon Prime, pois somente nela há a história dos criadores, com a jornalista tendo tido acesso à casa e forma de vida do casal-guru, dando-lhes voz. Com isso, podemos ter um bom vislumbre de como dois jovens desorientados, mas ambiciosos, foram tornando um negócio mal ajambrado para caçar níqueis de solitários desesperados em uma seita até que relativamente complexa, com domínio não apenas da alma dos integrantes, mas de seus corpos, chegando ao ponto de obrigarem alguns a fazerem mudança de gênero sexual. E teve quem fizesse mesmo.
A história prende nossa atenção justamente porque o que parecia apenas mais uma “novelinha” de seita, e das mais bobinhas, vai surpreendendo aos poucos, revelando-se como algo muito mais sério e trágico. Vale, então, assistir em seguida, e na íntegra, à série da Netflix, que foca mais nas vítimas, tendo seu ponto alto nos relatos de mães de alguns dos membros da seita, todos muito comoventes. Deixe, então, o último episódio da série da Amazon Prime para o fim, com mais da história dos gurus e relatos de seus amigos e familiares, tão comoventes como os daquelas mães das vítimas.
A soma das séries, com seus enfoques diferentes, permite enxergar onde há amor verdadeiro em meio a tantas de suas falsificações
Desta forma, temos um raro retrato do desenvolvimento de uma seita, do ponto inicial em que é muito difícil de enxergá-la como tal, passando pelo processo em que a ingenuidade e fragilidade dos membros alimentam a ganância e a tirania dos gurus, chegando ao ponto máximo de desconexão da realidade que afeta tanto as vítimas – desde as que conseguem escapar, mas carregando severos traumas psicológicos, até as que permanecem reféns por ser mais insuportável admitir a verdade – como os gurus, que se aferram cada vez mais ao seu narcisismo descontrolado, tornando-se abusadores escancarados, mas cuja história de vida, quando conhecida, permite enxergar antes duas tragédias humanas do que dois psicopatas frios e racionais.
No fim das contas, a soma das séries, com seus enfoques diferentes, permite enxergar onde há amor verdadeiro em meio a tantas de suas falsificações. Está no sofrimento profundo do pai de Shaleia, na dor do amigo de Jeff, na agonia das valentes mães das vítimas. Também está no amor real no relacionamento de duas egressas da seita, o que as protegeu psiquicamente de um trauma maior, bem como na atitude da família de Brianna (presente no documentário da Amazon), uma das vítimas que escapou e foi mais do que bem recebida novamente em casa, onde tem sido cuidada com amor, carinho e compreensão.
Saímos do documentário da Amazon sentindo mais compaixão do que raiva e ímpetos de justiceiro (que é mais a linha do da Netflix). E talvez seja só assim, com muita compaixão, que a esperança pode ser curada do desespero que nos torna vulneráveis a seitas como Twin Flames.
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