Conhece o quadro A Natividade Mística, pintado por Botticelli? É a única de suas pinturas que ele assinou. Mais ainda, acrescentou uma inscrição em grego no alto da tela, que diz: “Este quadro foi pintado ao fim do ano 1500, durante os problemas da Itália, por mim, Alessandro, na metade do tempo depois do tempo no qual se tornava verdadeiro o capítulo onze de São João Evangelista e o segundo ‘ai’ do Apocalipse, e quando Satanás caiu por terra por três anos e meio. Depois disso o demônio será acorrentado e o veremos pisoteado como neste quadro”.
Esta inscrição exige contextualização histórica. Que problemas eram esses na Itália? Em 1494, o exército francês invadiu o país, com 10 mil soldados entrando em Florença. Parecia que o griteiro apocalíptico de anos anteriores feito por um monge chamado Savonarola não era histeria, mas uma real profecia que se cumpria agora com a Itália sendo punida. Houve um vácuo político na cidade e foi Savonarola quem o ocupou, demovendo o rei francês de tomar Florença, deixando-a pacificamente.
O apoio popular a Savonarola foi imediato e este o aproveitou, declarando a cidade como sendo a “nova Jerusalém”, um novo centro do cristianismo, iniciando então uma campanha de purificação da humanidade, a começar pelo que considerava fruto da sua vaidade: as obras de arte. Queimou diversas delas, como escritos de Dante e Ovídio, bem como pinturas, como as de Botticelli. Este, porém, teria ficado tão impressionado com os acontecimentos que entrou em uma crise religiosa profunda, tornando-se discípulo de Savonarola.
Neste ano de 2023, a pintura de Botticelli me chamou mais a atenção do que outras da Natividade que costumo contemplar durante o Advento
É claro que algo assim não passaria batido pelo Vaticano, que excomungou Savonarola em 1497. Mas o monge dobrou a aposta, dizendo ser a voz de Deus e que, se estivesse errado, Deus o fulminaria. Chegou a dizer que caminharia sobre o fogo para provar que era portador da Verdade. Pois um frade franciscano o desafiou a tanto. Tudo estava preparado, mas, na hora de cumprir a promessa, Savonarola deu uma desculpa para não comparecer. Foi fatal para sua credibilidade, perdendo apoio popular e sendo preso por seus inimigos. Teria confessado, sob tortura, que seria um farsante e foi condenado à morte na fogueira, o que aconteceu em 1498.
E Botticelli? Não deixou de continuar a ser influenciado pelo ex-monge e A Natividade Mística, pintada dois anos depois, é prova disso, justo pela inscrição colocada acima da tela. Mas, como temia ser perseguido, como outros discípulos de Savonarola estavam sendo, não mostrou a pintura em público. Morreu em 1510 e o quadro só foi descoberto entre o fim do século 18 e início do 19, por William Ottley, um colecionador de arte. Somente veio a ser exposta publicamente em 1857. Hoje, está na National Gallery, em Londres.
Não sabia por que, neste ano de 2023, essa pintura me chamou mais a atenção do que outras da Natividade que costumo contemplar durante o Advento. Mas o fato é que fiquei intrigado com a inscrição acima, fui atrás da sua tradução e, com ela, a história acima, que mudou a direção do meu olhar. Antes de saber disso, focava direto no centro do quadro, nas figuras de Maria e do Menino. Desta vez, o olhar veio de fora para dentro, primeiro para o que contorna a cena central: os anjos dançando de felicidade no Céu e abraçando humanos na Terra, enquanto sete demônios fogem para o Inferno.
Não consegui não ver, porém, nessa alegria, muito da angústia que a inscrição no topo revela, aquele “ai” que não era o primeiro, nem o último. A certeza de estar vivendo a tribulação final em meio às dúvidas que certamente existiam diante do que Botticelli vivera, vivia. Se concordava com Savonarola, por que pintaria este quadro que, pelas ideias do excomungado, deveria ser destruído? Se não concordava, por que acreditar que era o Juízo Final? Talvez o desejasse, como solução da angústia torturante? O agigantamento de Maria e do Menino, em comparação aos reis magos à esquerda e aos pastores à direita, simboliza tanto suas grandezas e importâncias como, para mim, também revela uma possível “exaltação imaginativa” do pintor, mais ou menos no sentido que à expressão dá Paul Diel, quando o sujeito se sente acuado por uma realidade que pouco compreende e diante da qual se sente impotente.
Perceba como o chão na gruta em que se encontra a Sagrada Família está inclinado o suficiente para fazer duvidar de sua estabilidade, dando à figura de José, estranhamente de costas para nós, assim como o Menino está de costas para ele, uma função de apoio à manjedoura. Talvez a inclinação não seja suficiente para fazê-la escorregar, tornando esse apoio desnecessário e, no entanto, ei-lo ali, naquela posição que, para mim, torna inverossímil as tentativas de interpretação de ver José dormindo ou descansando pacificamente. Para se manter naquela posição, há de haver um esforço corporal, mantendo-o tensionado. Se há sono nesta condição, parece-me mais por esgotamento do cansaço do que serenidade beatífica, embora esta se faça presente. É de José o que mais gosto neste quadro.
Enfim, o que isso teria a ver com o Natal de 523 anos depois? Repare, todo Natal é antecedido por um Apocalipse. Talvez eu esteja projetando em Botticelli as angústias do nosso tempo, concluindo do contexto histórico e sua pintura um símbolo do que vivemos no momento, dessa sensação de “estamos quase lá” no fim de tudo, menos pelo que acontece hoje e mais pelo esgotamento diante da loucura da máquina triturante do mundo feita de tribulações incessantes cujo sentido nos escapa. Mas, no fim das contas, não há contexto histórico que não passe e o quadro à época não visto sobreviveu para além de qualquer circunstância temporal, simbolizando não aquele ou qualquer outro tempo, mas a fé no único Sentido do qual não escaparemos e a esperança que desfaz o cansaço de José, de costas para o mundo, em contemplação serena da alegria do Menino que nasceu para todos os tempos. Que Ele nos console, proteja e abençoe. Feliz Natal, meu caro leitor, feliz Natal.
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