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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Humor e censura

Um dia daqueles

O humorista Léo Lins leu os decretos usando humor durante seu show de stand up na cidade de Marilia (SP). (Foto: Reprodução/YouTube)

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Nunca é um dia bom. Este mesmo, esse daí, que se somará a tantos passados se tornando um só, um dia daqueles... Ou alguém lê isso e imagina que está sendo dito ou escrito com outro tom que não o da aceitação derrotada ou o da esperança cansada?

Não que seja um dia Alexandre de Moraes também. Não é tão ruim assim que não se possa sair às ruas, ficar numa filinha no aeroporto de Roma, essas coisas. É mais daqueles dias em que “o Brasil me obriga a beber” – obriga mesmo, sabe como? E, nos últimos tempos, o barman nacional tem sido o ministro. Então, refiro-me mais a um dia Monark.

No que podemos perceber que toda tentativa de ironia, de rir, de fazer piadinha para aliviar um dia daqueles dificilmente funciona. Enxergo o interlocutor compassivo forçando, no máximo, aquela risada broxada, mais para um sorriso de condescendência, como se dissesse: “Vai ficar tudo bem...”, sem acreditar minimamente que tudo poderia ficar bem.

Esse é mais daqueles dias em que “o Brasil me obriga a beber” – obriga mesmo, sabe como? E, nos últimos tempos, o barman nacional tem sido o ministro Alexandre de Moraes

Nem estou tendo um dia daqueles, talvez seja melhor deixar claro, ainda que inacreditável. Resolvi escrever sobre isso depois de assistir ao vídeo do humorista Léo Lins recebendo uma notificação da prefeitura de Marília, cidade onde fez um show no último fim de semana, ameaçando de multa caso fizesse piadas contra, dentre outras coisas, os “interesses da administração”.

Repare no olhar de Léo, seja no camarim, seja no palco. Mais do que indignado e assustado, você percebe o cansaço. Repare na voz, na desesperança, na impotência das piadinhas, todas, menos a do suicídio, que não sabemos qual foi, mas dá a medida perfeita do primeiro efeito do humor negro, gênero em que é especialista, que é gerar um forte desconforto para permitir a catarse posterior pelo riso. Espero que no show isso tenha acontecido porque, no vídeo, só temos mais um exemplo de um dia daqueles...

Caso o leitor ainda precise de explicações de por que é absurdo algo assim, recomendo a leitura da reportagem desta Gazeta do Povo sobre o caso. O fato me fez pesquisar mais sobre humoristas que sofreram ou sofrem com pressões ou absurdos autoritários assim. Acabei assistindo à entrevista do Dave Chappelle a David Letterman, no programa que este último mantém na Netflix, na qual revelou como sofre de crises de ansiedade pelo seu trabalho, dizendo que as pessoas não teriam noção do desgaste emocional exigido para preservar sua franqueza. É possível começar a ter essa noção pelo vídeo de Léo Lins.

A certa altura, Chappelle disse algo muito significativo: “É preciso deixar espaço para a redenção. Quanto mais espaço para redenção, mais espaço haverá para a honestidade. E, se você quiser chegar a alguma conclusão sobre algumas dessas questões levantadas [ele se refere aos temas sensíveis que vêm causando a censura e cancelamento de muitos humoristas], vai exigir alguma honestidade e, com certeza, algum perdão.”

Vale a pena meditar sobre isso. Todos somos culpados por algo, se formos ser honestos. Temos preconceitos, em algum momento iremos julgar açodadamente antes de saber o que houve de fato, transformaremos nossos sentimentos feridos em injustiças que devem ser vingadas ou desprezaremos o sofrimento do outro, intensificando-o. Redenção... Talvez seja esse o limite do humor: manter a porta aberta para a redenção. Mas como fazer isso?

Repare no olhar de Léo Lins, seja no camarim, seja no palco. Mais do que indignado e assustado, você percebe o cansaço

Chappelle dá bom exemplo em seu especial Sticks & Stones, também na Netflix. A certa altura, falou sobre o aborto, parecendo se posicionar favoravelmente, com uma clareza de pensamento que resume bem o ponto de vista de quem acha que é uma decisão da mulher e tão somente dela, considerando que isso seria justo na relação entre homens e mulheres. É aplaudido efusivamente até fazer uma guinada dizendo que, se é para sermos justos mesmo, então o homem também não poderia ser obrigado a pagar por nada: “Se você decidiu matar o bebê, eu pelo menos posso abandoná-lo. Meu dinheiro, minhas regras”.

O riso nervoso se espalhou pelo teatro e aí veio a conclusão perfeita: “Se eu estou errado, talvez estejamos todos errados”. E convidou a pensarem sobre. Gênio. Fez ambos os lados rirem de si sem querer, sem perceberem que abriram a porta para pensar não apenas no que seria supostamente justo para si, mas também para o bebê, o ignorado que está prestes a ter um dia daqueles...

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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