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Secretária Márcia Huçulak em apresentação da pasta sobre o coronavírus
Secretária Márcia Huçulak em apresentação da pasta sobre o coronavírus.| Foto: Reprodução

Domingo passado, voltando de uma fazenda no fim da tarde, atravessei a cidade observando a quantidade de pessoas caminhando pelas ruas, passeando pelos parques. As praças me chamaram mais a atenção, havia um número maior que o normal de antes da pandemia. Compreensível; afinal, depois de meses de restrição, com as melhoras nos indicadores de contágio e também depois de uma semana de frio polar vindo um tempo aberto com 30ºC, estranho seria se fosse o contrário. Pensei comigo: “a turma da prefeitura vai reclamar”.

Não deu outra. Lá vieram as admoestações da secretária municipal de Saúde, como uma madre superiora de colégio interno, na tática mais do que abusada em 2020 de tentar convencer aterrorizando: “A gente já começa a sentir a repercussão. Hoje, nas nossas UPAs e Unidades [Básicas de Saúde], sentimos o aumento de quadro de pessoas procurando os serviços de saúde. Hoje foi bem assustador”.

Compreendo que a secretária tenha de exercer esse papel, mas, para que não perca a credibilidade, nem a autoridade, é preciso que esteja baseada em fatos. Pelo que se conhece da doença até o momento, a média de aparecimento de sintomas da Covid-19 é em torno de cinco dias depois da contaminação, podendo chegar a 14 dias até aparecerem os primeiros sinais. É muito mais verossímil que a procura maior na última terça-feira tenha se dado em consequência do frio intenso da semana anterior, não do fim de semana que mal havia terminado.

Eis o maior erro dos contrários ao uso da cloroquina: tratar quem o defenda como se não fosse científico

Em meio ao pandemônio da pandemia é natural que muitos erros, tolos ou graves, sejam cometidos pelos gestores públicos, e o julgamento de sua atuação também deverá levar em conta como fazem sua própria avaliação depois de tudo ter passado o suficiente para que um olhar retrospectivo permita um exame de consciência. Por isso, gostei muito da entrevista reveladora que a secretária deu a esta Gazeta do Povo na última quinta, dia 3, em que consta um princípio desse autoexame, com rara sinceridade e transparência, permitindo inclusive constatar que alguns erros ainda não foram percebidos como tais.

Até aqui, não há dúvida de que o sistema de saúde de Curitiba suportou bem a demanda, não tendo sido necessários hospitais de campanha, nem tendo faltado medicamentos, respiradores e leitos de UTI. Este mérito é inegável. O que é controverso é a diferença que teria feito se o tratamento precoce fosse adotado pelo sistema, e não apenas como se fez e faz, monitorando os doentes em isolamento e intervindo apenas quando o quadro se agravar. A secretária enxerga isso como um “atletiba” entre os defensores da cloroquina contra os da ciência, time no qual ela se coloca: “Eu entendo que a cloroquina é o desespero das pessoas que querem achar alguma coisa para se apegar e defender que a sociedade pode funcionar”.

Eis o maior erro dos contrários ao uso do medicamento: tratar quem o defenda como se não fosse científico. A experiência de beira de leito de centenas de médicos também é científica, inúmeros medicamentos não existiriam se não fossem descobertos assim. Sem contar os diversos estudos observacionais e randomizados que começaram a surgir confirmando a utilidade do remédio. Se o leitor quiser se atualizar sobre isso, vale a pena assistir ao debate realizado recentemente, também por esta Gazeta do Povo, com médicos pró e contra o uso da hidroxicloroquina. Há razões para acreditar ou não que o medicamento funcione de fato, mas não as há para acusar quem pense o contrário de ser anticientífico. Até porque qual a evidência científica para se chegar a esta conclusão, de que seria um “desespero” dos médicos, como entende a secretária?

O que nos leva à avaliação das medidas de isolamento adotadas em Curitiba. Foram decretadas cedo demais, como a secretária confirmou ao revelar um dado importante para apuração de responsabilidades: a transmissão comunitária só começou por aqui no fim de abril. Entretanto, as medidas foram adotadas muito antes disso, com a prefeitura acabando por seguir o medo (científico?) do conselho das universidades, que decidiram suspender as aulas em meados de março.

A secretária tenta minorar a responsabilidade da prefeitura dizendo que, apesar disso, “não tem um decreto nosso, porque eu discuti muito isso com o prefeito, determinando o fechamento de nada lá atrás”. Não é verdade. O Decreto 470, de 26 de março, além de recomendar a suspensão de serviços e atividades não essenciais, determinou: “Art. 3.º Fica suspenso o funcionamento, enquanto durar a Situação de Emergência, de casas noturnas e demais estabelecimentos dedicados à realização de festas, eventos ou recepções”.

Já sobre as medidas adotadas posteriormente para forçar o isolamento, a sinceridade da secretária permite identificar erros, alguns assumidos, como o fechamento dos shoppings: “Abrimos os shoppings de segunda a sexta até para avaliar o impacto, e não teve impacto. Porque se as pessoas forem ao comércio seguindo esses três protocolos básicos, não há problema”. Ou seja, teria sido possível avaliar isso sem precisar ter fechado os shoppings.

As medidas de fechamento foram tomadas sem ouvir os diversos setores do comércio, sem ter o mínimo e óbvio cuidado de, antes de optar pelo radical fechamento, consultar os prejudicados para verificar se não seria possível continuarem funcionando respeitando as regras sanitárias

Outro erro, mais grave e ainda não percebido como tal, revelou-se quando se vangloriou de suas broncas em lives, acreditando que teriam sido boas para os comerciantes: “Mexemos com os brios deles e a partir dali eles vieram discutir com a gente, apresentaram seus protocolos. Até então, eles só estavam nos xingando por ter fechado, mas não apresentavam proposta de reabertura. Eu não entendo de restaurante, de loja de shopping de academia, eles que tinham de mostrar para nós como poderiam funcionar respeitando as regras sanitárias. A bronca serviu para esses setores saírem da paralisia e serem propositivos”.

Ou seja, as medidas de fechamento foram tomadas sem ouvir os diversos setores do comércio, sem ter o mínimo e óbvio cuidado de, antes de optar pelo radical fechamento, consultar os prejudicados para verificar se não seria possível continuarem funcionando respeitando as regras sanitárias. E isso fica muito pior quando lembramos que o poder público se gaba de que a quarentena teria sido fundamental para a preparação do sistema de saúde. Logo, não há justificativa razoável para que um plano de fechamento da cidade não tivesse sido criado em conjunto com todos os setores afetados.

É em virtude de decisões assim, somadas à antecipação insensata do isolamento, que se tornou muito difícil hoje convencer a população cansada, empobrecida e desconfiada das autoridades (com toda razão, como se vê) de que agora seria preciso um “esforcinho” a mais. A própria secretária sabe perfeitamente disso, tanto que teme se tiver de irmos para a tal da “bandeira laranja”: "ir para a bandeira laranja, hoje, seria o caos, eu ia apanhar de novo, teria de me mudar de Curitiba”. Todos rezamos e esperamos que isso não aconteça, mas, se for necessário, que o caos não seja alimentado pela histeria fabricada culpando a sociedade pelo que é inevitável.

Fica nítido, enfim, que a secretária não é apoiadora de fechamentos e lockdowns, ao contrário, como se entrevê quando falou da possibilidade da volta das escolas: “Eu tentei colocar isso em pauta, de abrirmos algumas escolas, para casos específicos, para dar suporte para as mães que são arrimo de família, para crianças que não têm internet e computador para fazer estudo em casa, mas fui massacrada. Não houve discussão sensata, houve questão ideológica, sem fundamento nenhum do ponto de vista da epidemiologia. (...) E, agora, poderiam voltar mais escolas, mas é muito difícil, pois não está tendo conversa com as corporações. Isso me incomoda profundamente, mas a discussão com os professores não avança, não se pensa no papel social”.

Por mais críticas que caibam, e cabem, à atuação da secretária, especialmente à forma como tenta convencer aterrorizando a sociedade da necessidade da manutenção das medidas de prevenção, também é necessário destacar que, se fosse outra pessoa no cargo, dificilmente teria resistido às pressões para o absurdo fechamento geral da cidade. Ao leitor pouco afeito aos bastidores do poder, informo que é muito graças à firmeza da secretária que não estamos amargando um lockdown desejado por alguns membros do Ministério Público. Espero que siga se mantendo firme sobre isso e agradeço a ela por sua transparência, que permite que méritos e deméritos sejam conhecidos e reconhecidos. E justamente por conseguirmos fazer isso, esse primeiro balanço parcial desta pandemia por aqui, que temos bom sinal de que o pior passou.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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