“Tive um professor, lá no seminário, que dizia o seguinte: ‘vocês devem preferir morrer a se banalizarem.’ Não sejamos medíocres. Havia uma frase latina de um jesuíta que dizia ‘ad maiorem natus’, o homem nasceu para as coisas grandes. Não se pode banalizar. E na aula dele ele só falava de Xenofontes, Sócrates, poetas epicuristas, era uma coisa altamente não banal. Se esse professor me visse hoje escrevendo sobre o Hargreaves, sobre José Sarney, sobre o Bresser Pereira, esse professor realmente me diria: ‘onde está você?’”
As aspas foram para Carlos Heitor Cony, um trecho de sua resposta dada nos idos da década de 1990, em entrevista, à pergunta sobre o que o divertia. Pois ele se divertia com a política, preferindo rir das mediocridades da época do que chorar por elas. Quem dera eu conseguisse me divertir assim com os políticos atuais, mas, para mim, acompanhá-los é como passar por um acidente de carro na estrada. É irresistível não virar o pescoço, mirar lamentando a desgraça e seguir em frente. Mas como estamos numa época em que o acidente é tamanho que interditou toda a estrada, não há como escapar.
E cá estou, sentado na beira da estrada testemunhando um arbítrio atrás do outro do Governo do Paraná e Prefeitura de Curitiba, nada podendo fazer salvo dar voz aos muitos que estão vendo e sofrendo tamanho abuso estatal, como a da empresária Elisa Ruppenthal que nesta semana teve sua loja, que não estava aberta, “visitada” por fiscais da prefeitura admoestando-a de que não poderia estar com a vitrine à mostra, mesmo com a loja fechada, porque isso instigaria as pessoas a comprarem e ainda a informaram de que não teria alvará para realizar e-commerce. Em seu perfil pessoal de rede social a empresária publicou um vídeo narrando esses fatos e pedindo ajuda.
O mesmo vídeo foi postado também pela página comercial de sua loja na mesma rede social e nela o sr. Prefeito de Curitiba comentou, respondendo o seguinte: “Fui indagar a fiscalização. A senhora estava com a loja aberta, a vitrine exposta, e estava atendendo dentro da loja. A Senhora alegou ter e-commerce e foi orientada pela equipe a manter a loja fechada, e vender só por e-commerce. Não foi sequer notificada. Contrariar Decreto Sanitário do Governador do Estado chama fiscalização. Guarde sua revolta contra o virus que mata. Está pesado mas #VaiPassar. Mais rápido se mais gente cooperar.”
Não demorou e o prefeito foi desmentido nos comentários da mesma postagem por diversos outros comerciantes que viram ou sofreram a ação dos mesmos fiscais, confirmando tudo o que a empresária disse. Que feio que ficou, sr. Prefeito, mas muito feio mesmo. Contrariar a realidade chama desmascaramento público da mentira. Deveria guardar sua revolta contra o vírus que mata, não contra os cidadãos que pagam seu salário e de seus fiscais que ou são tiranetes deslumbrados com o abrupto poder que o senhor e o governador do estado lhes concederam ou estão muito mal orientados por quem deveria lhes orientar, como o senhor mesmo. Está pesado mas #VaiPassar, a pandemia vai passar, assim como o senhor e o governador vão passar. Mais rápido se mais gente cooperar.
O que me faz voltar ao professor de Cony, à necessidade de lutarmos para não nos banalizar, não sermos medíocres. Conseguir rir da desgraça não deixa de ser uma forma de não se banalizar tanto. E Cony conseguia porque tinha um truque para isso: “Não dá para viver sem um truque. Eu me declarei morto. É uma sensação tranquila essa da gente se saber morto. Clandestino morto. Insuspeitado morto. Na tripulação do mundo já não me sinto comprometido com nada, mas continuo como testemunha do espetáculo. Não mais como cúmplice e nem vítima. Este é o meu truque.”
Foi também o “truque” de Alexander Soljenítsin para sobreviver ao totalitarismo comunista, conforme narrou no seu famoso Arquipélago Gulag e que serviu de inspiração para Nicolau Steinhardt, igualmente preso por um regime comunista, para sobreviver a isso e deixar seu testamento político em seu O Diário da Felicidade, onde coloca este “truque” como uma das soluções “para sair de um universo cerrado - e não é necessário de modo algum que seja um campo de concentração, prisão ou outra forma de encarceramento, pois a teoria se aplica a qualquer tipo de produto do totalitarismo”, o que não deixam de ser as arbitrariedades estatais que estamos sofrendo.
Parafraseando Isaac Newton, é se apoiando nos ombros de gigantes que nos elevamos da mediocridade reinante, como fez Paulo Polzonoff Jr., em texto recente nesta Gazeta do Povo, nos ombros de quem me ergo agora para encerrar esta coluna também encontrando Sêneca na feira livre dando nome ao “truque” de Cony, Soljenítsin e Steinhardt: virtude da resignação. Obrigado, Paulo: "É se perceber em meio a uma realidade desagradável contra a qual o indivíduo é impotente. E não se deixar abater por essa sensação de impotência. É aceitar que hoje o fiscal da prefeitura, com sua inseparável prancheta e o bloquinho de notificações, cercado por guardas e seus ameaçadores cacetetes, são miniversões de Nero vendo Roma pegar fogo e se regozijando com isso. Lembro aqui ao leitor que a resignação virtuosa defendida por Sêneca não pressupõe desesperança. Ao contrário. Também é virtude a ser cultivada viver de acordo com a sabedoria daqueles que nos precederam: não há nada de novo sob o Sol e um dia tudo isso vai passar."