O leitor que por aqui me acompanha talvez se recorde que durante o ano passado escrevi várias colunas rascunhando um pouco da história da chamada “nova direita”. Ao que não sabia, todas estão a um clique de distância, nos arquivos da página. Observando como as várias direitas acabaram se unindo em torno da eleição de Jair Bolsonaro no 2.º turno, constatei 3 fatos que permitiam enxergar a forma que a “nova direita” tomava. Hoje, com as brigas internas dentro do governo e diante da divisão na “nova direita” em relação à manifestação marcada para o próximo domingo, dia 26, creio que vale a pena retornar àquelas verdades para entender melhor o que se passa no país.
Primeiro, a descentralização. À época, escrevi sobre os movimentos de rua: “Não há comando único, nem mesmo alguma unidade entre esses movimentos e grupos, salvo pontualmente conforme as circunstâncias”. As divergências quanto à manifestação próxima provam que nada mudou, salvo uma circunstância: Jair Bolsonaro, por ter sido eleito, tem ou teria o dever de ser o líder articulador, não apenas servindo como símbolo aglutinador momentâneo dessas correntes. Em nossa história, porém, estamos habituados a esperar e até desejar que nossos líderes centralizem as ações, comandem o processo delegando poderes. Mas descentralizar significa o oposto, é uma real divisão de poderes, mais do que delegação. Transformada em projeto de governo (mais Brasil, menos Brasília), a descentralização tem sido, de fato, uma das principais conquistas do governo, ainda que se possa discutir seu mérito nelas.
Seja por inabilidade ou fraqueza do Presidente, como muitos creem, seja por estratégia política, como muitos gostariam que fosse, essa descentralização tem acontecido, sendo um fato tanto dentro do governo como fora dele, na sua relação com o Congresso Nacional. A própria briga intestina entre a ala militar e a chamada ala olavista, que poderia ser facilmente resolvida pela autoridade do Presidente, é prova disso. Bolsonaro não pode, não quer ou não consegue resolver isso? Seja qual for a resposta, a descentralização do seu poder é a consequência concreta das coisas estarem do jeito que estão. A trégua momentânea atual se deve muito mais aos envolvidos terem parado de se atacar do que por uma ordem do Presidente, que no máximo pediu para que cessassem as hostilidades. A mesma consequência temos em relação ao Congresso Nacional. Toda a percepção de falta de articulação com parlamentares e do consequente protagonismo de deputados, seja por deficiência de atuação do Governo ou por decisão de assim agir, tem por consequência a descentralização do poder, com muitos chegando a falar num “parlamentarismo na prática”.
Isso é bom ou ruim? As duas coisas, na verdade. Por um lado, descentralizar o poder significa tentar reestruturar o jogo político nas suas entranhas que foram inteiramente corrompidas no país. É, sim, tentar acabar com o presidencialismo de colusão (e não coalisão) instaurado com a nova República, em que o parlamento era literalmente comprado e a tal da “articulação” nada mais era do que divisão da grana através de cargos e emendas, quando não propina. Isso estaria mudando? Cedo para dizer. Mas que parecem estar tentando mudar, parece. E é aqui que encontramos o segundo daqueles 3 fatos: ser reagente.
Como escrevi à época, quem é “reagente não propõe nada, apenas reage a algo”. Já notou como a reforma da previdência é muito mais vinculada à Paulo Guedes do que ao Presidente? A mesma coisa acontece com o projeto anticrime de Sérgio Moro. É deles o protagonismo, é deles a defesa perante o Congresso, até a articulação política, em boa medida. O que faz o Presidente? Aguarda a reação de quem discorda para poder reagir. No Congresso, o inimigo vem tomando forma, o chamado “centrão”, que embora seja um saco de gatos informe, é tratado como se fosse um bloco com unidade própria que estaria sabotando os projetos por interesses egoístas quando não escusos. À medida que isso foi ficando “claro”, e as mudanças na medida provisória que estruturou a administração do atual governo ajudaram muito nisso, Bolsonaro entrou em campo, de forma reagente e ainda que de forma indireta, aparentando estar emparedado, sem força suficiente para conseguir aprovar as reformas e governar porque a velha política não estaria deixando.
Verdade ou não, some-se a isso a oposição da esquerda, que embora derrotada e siga vivendo no mundo da lu(l)a, ainda tem força por estar encastelada nas universidades, especialmente federais, e na grande imprensa, e se torna verossímil, até mesmo provável, a narrativa de que Jair Bolsonaro é um homem perseguido, acossado de todos os lados, não tendo quase ninguém ao seu lado, salvo o apoio popular que o elegeu. A mobilização popular se torna, assim, crucial para que o governo dê certo e a manifestação agendada para este domingo mostrará o quanto estão sendo bem sucedidos nisto.
Para tanto, aqui entra o terceiro daqueles fatos: a juventude. Quem vem sendo a voz e, em boa medida, assumindo o papel de líder articulador desse esforço de mobilização popular é um dos assessores do Presidente, o jovem Filipe G. Martins, que tem feito postagens nas redes sociais tentando criar um símbolo a aglutinar as pessoas e formar um movimento, acompanhado de uma retórica convocatória, como nesta postagem: “Diferente das vozes cínicas do establishment, que veem como inevitáveis as práticas que levaram os últimos presidentes brasileiros à desgraça, o homem comum entende que não falta vontade política ao Presidente, mas sim compromisso com o interesse público aos seus opositores. (...) Diante disso, não é otimismo esperar outras vitórias do homem comum contra os esquemas espúrios e imorais que o establishment deseja nos impor como inevitáveis: basta que quem foi escolhido líder pelo povo exponha a podridão do sistema e peça mais engajamento popular. Deus Audaces Sequitur.”
O símbolo escolhido é uma espécie de texugo, o ratel ou texugo-do-mel, um animal pequeno, feio, praticamente desprovido de medo e que quando ataca é para matar e o faz com rapidez. Vale a pena assistir à vídeos desse bicho espalhados pela internet, enfrentando sozinho um grupo de leões ou animais ainda maiores e mais ferozes, de forma destemida e quase sempre saindo vencedor, ainda que machucado. Faz sentido escolhê-lo como símbolo? Faz, por motivos óbvios. Mas também não faz porque, primeiro, o Presidente não tem se comportado como um ratel, não ainda pelo menos. Parece muito mais um bicho entocado, acuado, do que enfrentando os leões de peito aberto. Quem pareceu mais com um ratel nesse início de governo foi Olavo de Carvalho. Segundo, porque não carrega apenas o significado do destemor, mas outros nada bons, afinal, o ratel é conhecido por não estar nem aí para nada – costuma-se chamá-lo como sendo aquele que “don’t care” – e é extremamente agressivo, carniceiro até, matando o que vê pela frente e em quantidade maior do que a necessária para se alimentar. Costuma, aliás, ser um problema sério para fazendeiros. Pode servir, portanto, tanto como símbolo do destemor de quem compra a briga, seja lá qual for o seu tamanho e sem se importar com o que teria a perder, como, por isso mesmo, também como símbolo de destruição revolucionária.
Seja como for, com ratel ou sem ratel, uma coisa é certa: a escolha é por obter vitórias através da pressão popular, o que significa dizer, em termos mais claros: conquistar pelo medo. Se essa mobilização popular for de fato conquistada – e domingo parece que teremos uma resposta decisiva disso – o capítulo seguinte, por inevitável, será alguma formalização, seja de um novo movimento ou mesmo um partido político, com o surgimento de militância organizada. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos desta história da “nova direita”.