Ouça este conteúdo
“Semana passada escrevi que achava que veria o mais belo pôr-do-sol aqui em Cartagena. Não sei se foi. Tinha um DJ.”
Relia aqui essa nota que registrei no que gostaria que fosse um diário de viagens, mas acaba sendo mais um repositório de breves comentários. Queria que este texto fosse um compilado delas, mas não funcionou. O realmente memorável percebo que não fica registrado assim, mas de outra forma.
Não sei ser turista. Nunca fiz questão, na verdade. Nem de viajar ou morar fora do país. Quando na adolescência meus pais me deram a oportunidade de fazer um intercâmbio, não vi razão, estava bom como estava. Meus irmãos fizeram e, hoje, vendo em retrospecto, acho que deveria ter feito também, não só pelo ganho de maturidade que tiveram, mas porque talvez descobrisse antes o quanto uma viagem bem vivida faz diferença, enriquece, alarga a alma.
Tenho feito algumas assim nos últimos anos, sempre com um propósito que não é turístico, mas literário, como o desta para Cartagena, por causa de Gabriel García Márquez. Já escrevi por aqui sobre algumas, aliás. Por causa delas, a ideia do diário foi se tornando mais para a escrita de memórias de viagens, que só com a distância no tempo revelam o que realmente ficou de memorável.
É assim que 100 Anos de Solidão começa, aliás, num dos mais famosos primeiros parágrafos da literatura, com o coronel Aureliano Buendía diante do pelotão de fuzilamento, lembrando-se do momento da infância em que conheceu o gelo. Só quem experimentou o calor daquela região caribenha da Colômbia entende quão significativo algo tão singelo e banal, como o gelo, pode vir a ser. Mas é só na distância do tempo, na hora em que achava que ia morrer, que o mais memorável se revelou.
Só memórias assim importam, na verdade. Quando foi a vez de o próprio autor, Gabo, enfrentar o pelotão de fuzilamento da perda da sua memória, as últimas restantes foram como o gelo de seu personagem. Num dos lampejos de lucidez dos últimos dias, pediu para voltar para a casa do pai, onde tinha uma cama junto da dele. Era a casa do avô, na verdade, em Aracataca, onde viveu até os 8 anos.
Soube disso lendo o livro escrito pelo filho de Gabo, Rodrigo, chamado Uma Despedida, em que contou os últimos momentos do pai. Comprei em Cartagena, no dia seguinte à visita àquela casa (reconstruída) de Aracataca, vendo as camas lado a lado. Se você me perguntar se gostei mais de Aracataca ou Cartagena, responderei: Macondo, que é a cidade literária criada por Gabo em 100 Anos de Solidão, tendo Aracataca por modelo.
A força literária de Macondo é tanta em Aracataca que, na realidade, nem existe mais esta última; tornou-se Macondo. Chegaram até a fazer um plebiscito para mudar o nome da cidade, mas Macondo foi derrotada. Ainda bem, porque, mantendo-se na literatura, torna Aracataca um lugar mágico. Lá é como qualquer cidadezinha do interior da América Latina, Brasil incluído. Se você não leu o livro, não há por que conhecê-la. Tendo lido, já a conhece, acredite. Visitá-la será como se tornar um personagem da obra.
Lá pelo fim da visita, um aguaceiro caiu, como aquele no livro que durou meses pra acabar. E, na saída, a igrejinha abriu para receber a morte, com uma missa de corpo presente. Os moradores, até então entocados, foram surgindo, tomando a praça em que a estátua de Gabo, sentado digitando em uma máquina de escrever, parecia velar por todos. É a imagem que, no mesmo instante, sabia que seria, será, meu gelo.
Era nisso que pensava quando o sol se punha no oceano, com o tumulto sonoro se aquietando, passando a escutar apenas o farfalhar de borboletas amarelas, dezenas delas, a bailar sobre as ondas do mar caribenho. Nas minhas memórias não terá DJ nenhum.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos