Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo

A vocação dos náufragos

José Ortega y Gasset – Wikimedia Commons (Foto: )

“Observai os que vos rodeiam e vereis como avançam perdidos em sua vida; vão como sonâmbulos, dentro de sua boa ou má sorte, sem ter a mais leve suspeita do que lhes acontece.”

Assim começa um dos trechos mais citados da obra mais famosa de Ortega y Gasset, “A Rebelião das Massas”, que ele começou a publicar em artigos de jornal a partir de 1929. Se há quase 90 anos estava assim, imagine na Copa. A atualidade do livro impressiona, talvez mais hoje do que naquela época:

“Porque a vida é um verdadeiro caos onde ele está perdido. O homem suspeita disso, mas tem pavor de se encontrar cara a cara com essa realidade terrível, e procura ocultá-la com uma cortina fantasmagórica, onde tudo está muito claro. Não importa que suas ‘ideias’ não sejam verdadeiras; usa-as como trincheiras para se defender da sua vida, como rompantes para afugentar a realidade. O homem de cabeça clara é aquele que se liberta dessas ‘ideias’ fantasmagóricas e olha a vida de frente, e assume tudo o que é problemático nela, e se sente perdido. Como isso é a pura verdade – a saber, que viver é se sentir perdido – aquele que o aceita já começou a se encontrar, já começou a descobrir a sua autêntica realidade, já está em terra firme. Instintivamente, como o náufrago, buscará algo a que se agarrar, e essa busca trágica, peremptória, absolutamente veraz, porque se trata de salvar-se, o fará ordenar o caos da sua vida. Essas são as únicas ideias verdadeiras: as ideias dos náufragos.”

Embora nunca antes na história do universo tanto conhecimento esteja disponível e tantos intelectuais sejam formados, talvez também nunca antes tivemos uma cortina fantasmagórica tão cerrada a ocultar a realidade. A vida intelectual hoje cabe num ditado popular: por fora, bela viola; por dentro, pão bolorento. A vocação intelectual no século XX até o presente momento se reduziu a isso: vocação para náufrago.

Mas há quem naufrague e não fique tocando violino no convés do Titanic, buscando se salvar e salvar o próximo, na medida da sua possibilidade e capacidade. É o caso de Martim Vasques da Cunha, autor do indispensável “A Poeira da Glória”, vendido como uma inesperada história da literatura brasileira, mas sendo muito mais do que isso. Trata-se de um sincero e comovente esforço de interpretação da alma brasileira através de uma narrativa do nosso drama moral real.

Mas sobre isso já falei o suficiente, interessa-me aqui exemplificar melhor o que significa esse naufrágio intelectual. Um dos elementos essenciais de qualquer vocação e vida intelectual, seja individual, seja coletiva, é a necessidade do diálogo. Diálogo com intelectuais do passado mantidos vivos porque presentes. Diálogo com intelectuais vivos que padecem do mesmo contexto histórico e cultural. Diálogo com o transcendente a qualquer época. Reúna-se todos os diálogos e temos o que muitos chamam de “A Grande Conversa” (para usar a expressão de Robert. M. Hutchins).

Ou seja, a vida intelectual naufraga sempre que o diálogo desaparece. Se olharmos a história do Ocidente nos últimos séculos constatamos com facilidade que fomos abandonando esses diálogos um a um. O transcendente foi boicotado e censurado e do passado nos interessamos apenas pelos que nos justificam no presente. Somos nós que julgamos nossos antecessores, nunca o contrário. Já o diálogo entre os vivos, quando existente, tornou-se parte dessa “cortina fantasmagórica” a que Ortega y Gasset se referiu.

Veja o exemplo de “A Poeira da Glória”, que diálogo gerou entre os intelectuais pátrios? Deixemos de lado a legião de hienas ideológicas que não leram mas têm certeza que o livro não presta. Talvez a única crítica como tentativa de diálogo com “A Poeira da Glória” tenha sido feita por Ronald Robson na sexta edição da finada revista “Nabuco”. Mas não se tratou disso, de diálogo, infelizmente. E nem é porque, já de início, apresentou julgamento exaltado da obra: “escandaloso anti-exemplo de crítica”, “uma temeridade”, “plena gratuidade que dirige quase todas as análises”, “contra-história cultural do Brasil sem pé nem cabeça”. Diálogo admite juízos assim, é óbvio.

Acontece que o próprio julgamento é desmentido pelo julgador, ao fim do texto, quando, depois de resumir o seu desgosto, “Entre tantos outros motivos, desgostei de A poeira da glória por erigir ‘aceitação da realidade’ e ‘absoluto estético’ em critérios principais de avaliação da literatura brasileira e da realidade brasileira que ela nos apresenta; é história do Brasil como ‘história do realismo espiritual’, digamos assim.”, confessou concordar integralmente com o critério utilizado:  “Finalizo esta série de comentários dizendo que nem ‘realismo espiritual’ nem ‘liberalismo’ nem ‘cidadania’ sejam coisas que eu rejeite (ao contrário: aceito integralmente o primeiro, em boa medida o segundo, em alguma medida a terceira)”.

Não são esses os critérios principais da avaliação da literatura e realidade brasileira no livro (de novo, remeto a minha análise sobre o livro), mas ainda que fossem, como pode o julgador aceitar integralmente o critério pelo qual a história do Brasil foi tratada e dizer que se trata de “contra-história cultural do Brasil sem pé nem cabeça”?

Não é apenas o julgamento que tem problemas graves, também a compreensão da obra. Ronald começou dizendo que o livro precisaria ser lido, no mínimo, sob três aspectos: crítica literária, interpretação cultural e pensamento crítico estranho aos modelos adotados pelas universidades brasileiras nas últimas décadas. Em verdade, e como defendo na minha análise já citada, esses três aspectos compõem um todo inseparável e essas leituras distintas, embora possíveis, se feitas sem referência constante ao todo que lhes dá sentido, pouco servem para embasar juízo sobre a obra.

E é justamente a incompreensão desse todo que se revela na leitura feita por Ronald Robson. Primeiro, por dizer que os dois primeiros aspectos referidos são investigações conduzidas sob critério moral, o da “imaginação moral” segundo Lionel Trilling. O critério moral é o eixo do livro, certamente, mas não segundo Lionel Trilling, conforme se lê da nota 14, da segunda parte do livro, o que também desmonta a crítica de que a obra trabalha apenas com uma noção, não um conceito, de imaginação moral. Em verdade, Lionel Trilling está no livro como inspiração do autor, conforme consta dos agradecimentos, não por seu conceito de imaginação moral, até porque o conceito com quem Trilling trabalha é o de imaginação liberal, não o moral, o que é objeto de estudo de Russel Kirk, o autor citado na nota referida. Inspiração esta, aliás, facilmente observável por quem leu sem picotar em aspectos desconsiderados do que lhes dá unidade.

E é justamente a unidade de “A Poeira da Glória” que escapou ao crítico de “Nabuco”. Por isso considerou ser um problema estrutural o livro ser construído por pares contrastivos de intelectuais, dizendo: “tudo no livro, parece, é ‘drama de uma alma’.” Não parece, não, Ronald, é drama de uma alma. E é nesse “parece” que vai a prova da incompreensão do livro. Daí porque considerou “sem critério” certas escolhas como a oposição entre Cecília Meireles a Sérgio Buarque de Holanda.

Outro exemplo disso surge ao criticar a escolha de “O Cortiço”, de Aluizio de Azevedo, considerando que esse autor teria outro livro melhor, mais representativo da sua qualidade. Mas o critério de Martim não foi esse, sua escolha decorreu do fato de “O Cortiço” ser um dos livros mais lidos nas escolas. E é esse justamente porque o que interessa é o drama de uma alma na qual todo e qualquer brasileiro pode se reconhecer – se quiser se enxergar. Ou seja, o que o crítico acusa de ser “sem critério” é apenas demonstração de incompreensão sobre tal critério.

Mas não há somente incompreensão na crítica, há má leitura. Por exemplo, quando acusou Martim de tomar um único poema de Gregório de Matos como veículo legítimo da visão de mundo do poeta, quando basta ler o livro para saber que esse poema foi tomado como exemplo maior, não prova única (pg 38).

Mais do que má leitura, há que se duvidar se houve leitura completa. Por exemplo, ao acusar o autor de “curiosamente” não citar Eric Voegelin, pergunto-me se foram lidas as páginas 359, 361, 510 e 545, onde o autor é citado nominalmente.

Se a crítica de Ronald Robson guarda possibilidades de diálogo interessantes, como sobre as avaliações sempre complicadas sobre Machado de Assis, se aceitarmos discutir as partes desconsiderando o todo, faremos como os sábio cegos da famosa fábula indiana do elefante. Não conhece?

Num determinado local em que nunca ninguém tinha visto um elefante, apareceu um comerciante trazendo um. Os sábios cegos rodearam o bicho e cada um tirou uma conclusão de acordo com a parte que apalpava: “é uma parede”, disse o que tocava a barriga; “é uma lança”, disse o que tocava suas presas; “é uma cobra”, disse o que segurava sua tromba; “é uma árvore”, disse o que acariciava o joelho; “é um abanador”, disse o que mexia numa das orelhas; “é uma corda”, disse o outro segurando a cauda. Foi somente quando o sétimo sábio chegou e pediu a uma criança que desenhasse o bicho na areia que o todo da figura foi tocada e todos os sábios puderam, então, falar sobre o elefante.

Daí porque seja sintomático que essa crítica tenha sido aplaudida e recomendada somente por quem não leu o livro ou, se leu, se limitou a reclamar de supostos erros gramaticais, nada mais. Pior ainda os que fazem isso como profissão de fé de que seria “prova” da imprestabilidade do livro, com o que apenas demonstram duas coisas: 1) tomam a gramática como um fim em si, independente de estilo, conteúdo e forma; ou seja, nada entendem de gramática; e 2) estão a pedir um boicote, não a fazer uma crítica. Aliás, a imensa maioria dos supostos erros alegados são questões de estilo – coisa que não discutem, provavelmente por incapacidade –, outro tanto de revisão, nada demais, muito longe de macular o livro, muito menos impedindo sua leitura. Ou seja, é uma crítica que diz mais sobre quem a fez do que sobre o livro e seu autor.

Enfim, infelizmente há quem acredite ser preciso afogar outros náufragos para se manter à tona – e isso também é tratado em “A Poeira da Glória”. Mas no livro há vários dos náufragos de Ortega y Gasset, inclusive seu autor, daqueles cujas ideias valem a pena conhecer porque não são firulas de diletante, mas resultado de uma vida de esforço sincero, dedicação constante, estudo considerável e resistência ao caos reinante. Um livro de um náufrago para náufragos. É tudo que podemos exigir de um intelectual de verdade nos dias de hoje. O resto, como diria Ortega y Gasset, “é retórica, impostura, íntima farsa.”

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.