Falar de vocação nos dias de hoje é pedir para ser mal entendido. Como quase ninguém sabe mais o que seja isso, projeta-se no lugar disso o que se deseja ou se teme, quase sempre apenas para tentar se convencer das escolhas feitas, do destino que vai se cumprindo.
A confusão tem sido a regra, infelizmente. Há quem tome vocação como sinônimo de profissão, carreira; há quem ache que é o prazer que se deveria sentir pelo trabalho. Não precisa de muito para se mostrar o erro de ambas as visões, basta lembrar da vocação de mãe.
Quando você pensa em mãe, é profissão, carreira que vem à mente? Ou, ao contrário, seria uma vocação que até parece ir contra essas coisas? E ser mãe tem grandes prazeres, certamente, mas não na hora de trocar fraldas ou passar a noite acordada segurando um bebê chorando, não é mesmo? E isso não é raro, pelo contrário. Além disso, se vocação fosse trabalhar por prazer, como considerar a medicina uma vocação, se lida o tempo todo com dor e sofrimento?
Como esses dois equívocos, na verdade, nunca convencem e uma hora se revelam como insuficientes, o que mais temos à nossa volta são pessoas frustradas vocacionalmente. Viver num ambiente assim, onde a frustração parece ser a regra, tem consequências graves. A que me interessa nesse momento é o medo do fracasso que acarreta numa busca entre insensata e egoísta para evitá-lo.
Mas o que seria não fracassar no meio social brasileiro? Ter dinheiro, segurança material, para sermos diretos.
É o principal motivador da legião de concurseiros que abundam por aí, por exemplo. Raríssimas são as exceções que estão a tentar passar para servir ao público. A imensa maioria está tentando garantir o seu. Não se trata de querer ser rico, trata-se mais de “não passar necessidade”, garantir uma certa estabilidade até “o fim” num país cuja única estabilidade é ser instável.
Mesmíssimo objetivo buscam os prestadores de vestibulares, em sua maioria imensa. Daí o fetiche do diploma. Como o curso universitário é visto como meio para se obter dinheiro lá na frente, pouco importa a qualidade da formação que se obtém, interessa ter a autorização estatal de que se está habilitado a ganhar dinheiro fazendo isso ou aquilo.
Mas isso não é de agora, é “desde sempre”. Se há algo que a literatura brasileira documenta como nenhuma outra é isso: o fracasso existencial brasileiro. Se os alemães inventaram o Bildungsroman, o “romance de formação”, ninguém manja mais do que nós sobre o “romance da má formação” ou, se preferirem uma forma mais poética, usemos o verso de Manuel Bandeira: “o romance da vida inteira que poderia ter sido e não foi”.
Machado de Assis, nosso maior escritor, retratou isso com maestria. Em seu Memórias Póstumas de Brás Cubas, por exemplo, vemos nosso apego ao diploma desvinculado da formação recebida: “No dia em que a Universidade me atestou, em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no cérebro, confesso que me achei de algum modo logrado, ainda que orgulhoso”. Ainda que orgulhoso…
Que dizer, então, da obra e vida de Lima Barreto, ambas retrato dessa frustração existencial não aceita, mas amargada até a loucura, como em O Triste Fim de Policarpo Quaresma: “Porque o orgulho da aristocracia suburbana está em ter todo dia jantar e almoço, muito feijão, muita carne-seca, muito ensopado — aí, julga ela, é que está a pedra de toque da nobreza, da alta linha, da distinção”. Como no Brasil toda aristocracia é suburbana, vale para todos.
Mas talvez nenhum outro conseguiu retratar essa má formação do brasileiro de classe média e baixa como Marques Rebelo na sua obra-prima Oscarina, em que o protagonista, Jorge, começa o conto batendo em sua cabeça, dizendo: “Como há de ser, meu Deus, como há de ser?!”, para depois abismar-se em seus pensamentos: “Pedir conselhos? Tomar conselhos? Ele que nunca fora de conselhos… E com quem? Só se fosse com seu Fontes. Doutor Fortunato também poderia, com tenente Afonso, porém, seria mais acertado. (…) Afinal se decidiu: Puxa! Iria assentar praça, como voluntário, no Forte de Copacabana, onde diziam que o serviço era mais folgado e havia banhos de mar.” O restante da história mostra a degradação de quem deveria ter sido, mas não foi, terminando como um cachorro uivando no alto de um morro, literalmente. Essa degradação também está em toda a obra de Nelson Rodrigues, não à toa conhecido por ser autor da famosa série de contos: A Vida Como Ela É.
E cá estamos, na mesma. A literatura contemporânea continua nos atualizando de nossos fracassos, de nossas tentativas malogradas, de nossas vitórias tímidas. Dou três exemplos. Leia-se o fraco solipsismo de J. P. Cuenca em seu Descobri que estava morto; ou a bem escrita dor do parto de uma possibilidade de vida, em Até Você Saber Quem É, de Diogo Rosas; ou a imagética criativa de Rodrigo Duarte Garcia, em seu Os Invernos da Ilha, onde encontramos nossa descrença pelo grandioso, pelo sublime.
Não falei de literatura por opção. É porque ela é o espelho da nossa alma, ela nos mostra quem somos. Sem literatura, ficamos no escuro e falar sobre ela é como acionar o interruptor de luz. A boa crítica literária deveria fazer isso, como fez Martim Vasques da Cunha em seu A Poeira da Glória, livro que deveria ser obrigatório em qualquer curso de letras digno do nome.
Se vocação é chamado — e é —, o do brasileiro parece ser um só, infelizmente: proteger-se do fracasso. Por isso Tom Jobim disse que “No Brasil, sucesso é ofensa pessoal”. Acaba sendo mesmo. Mas eu prefiro outra frase sua, que me parece dizer mais e melhor quem somos: “O Brasil é de cabeça para baixo e, se você disser que é de cabeça para baixo, eles o põem de cabeça para baixo, para você ver que está de cabeça para cima”. É por isso que somos mais invejosos do que ambiciosos e fazemos do nosso humor não uma ironia de quem consegue rir de si, mas um esculacho satírico de tudo e todos que mais humilha e se humilha do que outra coisa.
Por fim, antecipo a resposta à pergunta inevitável: que fazer, então? Quando se está na UTI da vocação, só uma coisa: ser honesto consigo, respondendo à pergunta: para que estou estudando ou trabalhando mesmo? Ou a verdade liberta ou ela morre. Se morre, aí tanto faz, tudo será apenas cinismo ou hipocrisia.
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Confira o arquivo de colunas de Francisco Escorsim publicadas na Gazeta do Povo até maio de 2017.
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