Ouça este conteúdo
Sei que os temas do momento são as eleições, a Copa do Mundo, o segundo e belíssimo gol de bicicleta do Rony em cima do Fluminense e o fim da série Better Call Saul. Sei o quanto todos esses assuntos são de suma importância para a vida brasileira, caro leitor. Não debocho. Contudo, tirando o meu amor pelo Palmeiras, meu dia a dia é marcado muito mais por filosofia que por qualquer outro assunto noticiado nos maiores portais de informação. Não há nenhum privilégio nisso.
Confesso que pensei muito: escrevo sobre o debate da Band ou não? Não. Se fosse, falaria do barraco dos bastidores, moralmente muito mais instigante. Então, optei por falar de como imagino a genuína prática pedagógica em filosofia, porque não há nada mais democrático que o exercício da reflexão filosófica. Sinceramente, considero esse formato de debate muito domesticado. Quem vota em Lula continuará com Lula; quem vota em Bolsonaro não mudou o voto. Talvez Simone Tebet tenha tirado uns 19 votos de Ciro Gomes.
Em filosofia não existem a “minha verdade” e as “verdades dos alunos”, existe o critério objetivo da racionalidade e a experiência afetiva de se formular com precisão certos enunciados difíceis
Então, vamos de filosofia. O que um professor deve esperar de um aluno quanto à qualidade da aula de Filosofia? De fato, e lamentavelmente, a filosofia dada no ensino médio não implica em ensinar a filosofar. Contrariando a velha fórmula de Kant, o professor deve, sim, ensinar filosofia e não a filosofar. Noutras palavras, isso significa informar um conjunto específico de saberes conhecido como “história da filosofia” que faz parte das disciplinas de Humanas.
Da minha parte, entender o que os filósofos disseram ao longo da história significa muito mais do que meramente descrever e transmitir informações. Há problemas filosóficos persistentes e vale muito investigá-los. E estudar alguns grandes filósofos é ter oportunidade de vivenciar a formulação e a resolução desses problemas.
Nesses termos, aprender a formular os problemas filosóficos seria, justamente, a possibilidade de a aula apresentar-se como ato reflexivo – o que não significa tornar-se assembleia de discussão e palavrório. Eu tenho verdadeiro horror à ideia de que aula de filosofia é vaga e de “discussão”. Reflexão filosófica define-se pelo diálogo aberto, honesto e justificado. Erroneamente, a ideia de reflexão traz a marca distinta da ideia de passividade. Uma aula “expositiva” geralmente é julgada como um aprendizado passivo, como se o aluno simplesmente recebesse informações transmitidas pelo autoritário professor.
VEJA TAMBÉM:
Não faz o menor sentido pensar em termos de passividade para quem se dispõe a aprender com atenção. Silêncio e escuta requerem muita atividade da inteligência e autocontrole do espírito. Gosto de ouvir meus alunos com a finalidade de ter um retorno dessa atividade da escuta e da disposição, ou seja, quando recorro a “discussões” meu objetivo é criar um “debate conduzido” – totalmente diferente da ideia de “aulas de dar sua opinião”. O professor não deve deixar o aluno “simplesmente opinar”, mas apontar-lhe o erro e o acerto. A negligência do erro perverte a formação. Apontar o erro não é sinal de autoritarismo, mas sinal de comprometimento com a verdade e vitalidade do ensino.
Em filosofia não existem a “minha verdade” e as “verdades dos alunos”, existe o critério objetivo da racionalidade e a experiência afetiva de se formular com precisão certos enunciados difíceis. Fica-se feliz com o juízo certeiro e, sem dúvida, aborrecido com o erro. Entretanto, não ter consciência do erro é jamais ter condições de se fascinar com o acerto.
O que um professor de Filosofia do ensino médio deve avaliar? Ora, se toda uma avaliação corresponde à verificação de aprendizado, então uma prova de Filosofia avalia a capacidade de refletir filosoficamente. Em suma, para o nível do ensino médio, isso significa que, além do conjunto de informações apreendias mediante as aulas expositivas e as leituras, o aluno deve ser capaz de articular a multiplicidade de conhecimentos segundo o critério de uma unidade coerente, consistente, rigorosa e clara a respeito de um problema em questão colocado, geralmente, por um filósofo particular e por uma tradição filosófica em geral. Temos a obrigação de nos aventurarmos no grande debate entre Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, São Tomás, Descartes, Kant etc. – esse, sim, muito mais interessante que o debate dos políticos.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos