Como pessoas boas se tornam más? Essa é a pergunta do psicólogo social Philip Zimbardo, autor do livro O efeito Lúcifer. A obra de Zimbardo, com um pouco mais de 750 páginas, foi baseada numa experiência social conduzida por ele em 1971 na Universidade de Stanford e que chegou a virar filme em 2015: Experimento de aprisionamento de Stanford.
O experimento selecionou um grupo de pessoas aleatoriamente dividido em guardas e prisioneiros. Essas pessoas simularam a vida dentro de uma prisão. A seleção se deu mediante um anúncio de jornal que oferecia uma quantia equivalente hoje a US$ 94. De 70 inscritos, 24 foram selecionados.
Para ingressar no experimento, todos passaram por testes psicológicos. Portanto, estamos falando de pessoas psicológica e socialmente saudáveis. Elas pagam impostos, amam sua família e sua pátria, reciclam o lixo, param o carro para o pedestre atravessar a rua, não chutam o gato por sadismo...
Pessoas com as maiores boas intenções podem ser seduzidas a praticarem coisas abomináveis e perversas. Por quê?
Uma simulação de prisão foi construída nos corredores da faculdade. Zimbardo cumpriu o papel de supervisor da cadeia e estabeleceu algumas regras simples para os guardas manterem a ordem. Não darei spoiler do que acontece. Só digo isto: as conclusões foram chocantes a ponto de terem de interromper o experimento muitos dias antes do planejado por causa do excesso de violência e barbárie que tomou o local. Sim, aqueles dóceis cidadãos de bem foram capazes de atrocidades.
A conclusão de Zimbardo é seguinte: “uma série de participantes da pesquisa – sejam sujeitos universitários ou cidadãos voluntários – chegou a se adaptar, consentir, obedecer e a ser prontamente seduzida a fazer coisas impensáveis fora daquele campo de força de circunstâncias”. Ele descreve essas circunstâncias como “um conjunto de processos de dinâmica psicológica que induzem pessoas boas a fazerem o mal, dentre os quais a desindividuação, a obediência à autoridade, a passividade perante ameaças, as autojustificativas e a racionalização”.
Em outros termos, é possível nos depararmos com pessoas com as maiores boas intenções sendo seduzidas a praticarem coisas abomináveis e perversas. Por quê? Zimbardo traz uma definição objetiva do que seria o mal: “o mal consiste em se comportar de maneiras que agridam, abusem, humilhem, desumanizem ou destruam inocentes – ou em utilizar a própria autoridade e poder sistêmico para encorajar ou permitir que outros o façam em seu nome. Em suma: saber o melhor, fazer o pior”.
E concluiu que o que faz uma pessoa boa praticar o mal é o processo de desumanização seguido de um desligamento moral. A desumanização é um conceito central em todo o experimento, e ela consiste no seguinte: alguns seres humanos consideram outros seres humanos excluídos da ordem moral, de ser uma pessoa humana. Eu registrei esse processo como uma das principais consequências da imaginação totalitária.
O maior exemplo na literatura está no exercício mental do personagem do livro Crime e Castigo, de Dostoiévski: Raskólnikov, que justificou o assassinato de uma agiota por ela ser apenas um piolho para a sociedade. Como ele mesmo relata: “Acontece, Sônia, que matei apenas um piolho – inútil, nojento e nocivo”. Desumanização seguida de desligamento moral pelos excessos de grandeza do personagem. Matar é só a conclusão lógica.
Zimbardo faz parte daqueles autores que buscam compreender a natureza do mal a partir do fato de que ele pode ser praticado por pessoas com boas intenções apenas cumprindo o seu dever.
Em oposição à possível tentação da banalidade do mal, nós devemos adotar a “banalidade do heroísmo”, que seria não esperar atos heroicos de homens extraordinários, mas de pessoas ordinárias e comuns
Hannah Arendt deu um passo decisivo quando demostrou que Adolf Eichmann, responsável pela logística do extermínio de judeus pelos nazistas, era um funcionário público cumprindo o seu dever. A tese de Arendt ficou bastante conhecida como “a banalidade do mal”, que foi apresentada no relato do julgamento de Eichmann em Jerusalém, em 1961. Hannah Arendt fez a cobertura do processo para a revista The New Yorker. A respeito desse momento de sua vida, recomendo o filme Hannah Arendt – Ideias Que Chocaram o Mundo, de 2012. Outro autor é Stanley Milgram, psicólogo americano que estudou a natureza da obediência e realizou um experimento na Universidade de Yale, que posteriormente virou livro e depois filme: O Experimento de Milgram, de 2015.
Zimbardo não é um pessimista. Ele reconhece que, em oposição à possível tentação da banalidade do mal, “que postula que pessoas comuns podem ser responsáveis por atos vis de crueldade e degradação de seus semelhantes”, nós devemos adotar a “banalidade do heroísmo”, que seria não esperar atos heroicos de homens extraordinários, mas de pessoas ordinárias e comuns. São eles que “atendem ao chamado de servir a humanidade quando chega o momento”, pois “quando esse sino toca”, conclui Zimbardo, “saberão que toca por eles”.