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O técnico do Palmeiras, Abel Ferreira, durante partida contra o Botafogo pela Liberadores, em 14 de agosto.
O técnico do Palmeiras, Abel Ferreira, durante partida contra o Botafogo pela Liberadores, em 14 de agosto.| Foto: André Coelho/EFE

A Caça, dirigido por Thomas Vinterberg, é um baita filme que narra a história de Lucas – magistralmente interpretado por Mads Mikkelsen –, um homem de meia-idade que trabalha como professor de uma pequena escola em uma cidadezinha dinamarquesa. Pensei muito nesse filme nesses últimos dias, sobretudo por causa do linchamento virtual que vem sofrendo Abel Ferreira, técnico do Palmeiras, sentenciado como machista pelo tribunal dos sinalizadores de virtude. Antes que me acusem de clubista, gostaria de explicar minha preocupação a partir do alerta deste filme.

Uma advertência, meu caro leitor. Não entrarei, aqui, propriamente no mérito da discussão do “caso Abel”, mas no método e nos perigos do linchamento social. Meu foco, portanto, é a forma reativa de uma sociedade de justiceiros. Para isso, o filme é um exemplo apropriadíssimo.

Divorciado e tentando reconstruir sua vida, Lucas é muito querido pela comunidade local. Porém, sua vida vira um pesadelo quando é falsamente acusado de abusar sexualmente de uma aluna, Klara, uma garotinha filha de seu melhor amigo. O rumor rapidamente se espalha pela comunidade e, sem qualquer investigação e julgamento devido, Lucas é socialmente condenado. Já não há mais o que fazer. Todos sentenciaram: abusador. O filme explora as consequências devastadoras do linchamento social. É o melhor filme que conheço a respeito desse tema.

As redes sociais têm o poder de espalhar rumores e acusações com uma rapidez assustadora. Não há mais fatos, só narrativa

Interessante notar o seguinte – e aqui abro espaço para uma interpretação pessoal –: a diretora da escola desempenha um papel crucial na escalada da crise devido à forma inadequada de lidar com o primeiro relato de Klara. Em vez de proceder com cautela e buscar uma investigação cuidadosa, ela age de forma precipitada e, de imediato, presume a culpa de Lucas. Sem saber o que fazer, a diretora foi a primeira responsável por transmitir a informação para outras pessoas da escola e da comunidade sem a devida verificação dos fatos, sem considerar a possibilidade de a garotinha estar inventando tudo aquilo. A propósito, o filme conduz muito como se dá a origem do imaginário que se espalha como o contágio de um vírus em uma pandemia.

A atitude da diretora, embora possivelmente motivada por um desejo de proteger a criança, acaba por inflamar a situação de pânico moral. A falta de protocolos adequados e a ausência de uma abordagem mais ponderada e confidencial levam a diretora a tomar decisões que precipitam a condenação social de Lucas. Ela não tem a menor condição de lidar com o caso. Seu moralismo cego contagia os demais. Ela transforma a suspeita em uma acusação que destrói a reputação e a vida do professor.

Sempre pensei no papel da diretora, ao não saber conduzir a situação com o cuidado necessário, como a principal responsável por institucionalizar a histeria coletiva e fomentar o linchamento social de Lucas. Alguém em seu cargo tinha a responsabilidade de tratar a situação com o máximo zelo. Penso agora na responsabilidade que os próprios jornalistas tiveram no caso de Abel. É uma histeria que começa com a imprensa e se espalha pelas redes. Já não há mais o que fazer. A sentença está decretada: machista!

Nesse contexto, o direito à defesa e à presunção de inocência é corroído por uma atmosfera de caça às bruxas. Socialmente falando, os danos à vida dos acusados são irreparáveis. O pânico moral alimenta a desconfiança generalizada. Todos sinalizam virtudes para se proteger da mácula denunciada. Querem não só proteger a suposta vítima, mas expurgar a consciência coletiva de um dano imaginado.

No filme, Lucas é retratado como uma figura trágica que vê sua vida desmoronar diante desse tipo de acusação. A inocente garotinha não pode estar mentindo. Ele, um homem divorciado, só pode ser mesmo um abusador. A princípio, Lucas é incapaz de compreender a magnitude da situação. De fato, ele acredita que a verdade prevalecerá e luta para sair dessa teia de desconfiança, medo e histeria coletiva. No fim, o que sobra é a ambiguidade da violência redentora.

O microcosmo retratado em A Caça serve como um alerta sobre os perigos do linchamento social, especialmente em um mundo amplificado pelas redes sociais. Assim como na pequena comunidade do filme, as redes sociais têm o poder de espalhar rumores e acusações com uma rapidez assustadora. Não há mais fatos, só narrativa. O direito se torna uma prática narrativa. Em A Caça, vemos como a histeria coletiva e o pânico moral facilmente se transformam em armas purificadoras. O expurgo é, primeiro, destrutivo. Um método muito cômodo contra o qual não há saída.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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