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Quem acusa a filosofia de irrelevância - e diz que a ciência um dia responderá todos os enigmas humanos - não entendeu o lugar da ciência no quadro geral dos saberes e o significado da atividade filosófica na formação do espírito humano. Herdada da pior fase do positivismo, que vê obscurantismo em tudo o que não é espelho, a arrogância cientificista não passa de pura ignorância.
Não se pode negar filosofia sem outra concepção filosófica subjacente, já diria meu filósofo de coração, William James. No fundo, quem despreza a filosofia esconde outra concepção filosófica de mundo. Portanto, a negação da filosofia representa também um ato filosófico. Nesse caso, negar a filosofia a partir de um suposto conhecimento do valor da ciência é uma atitude filosófica e científica de péssima qualidade. Quem cai nessa não consegue ver que as próprias crenças motivadoras dessa atitude estão atreladas a uma filosofia e que não tem absolutamente nada de científico.
Ciências lidam com objetos particulares e demandam metodologias específicas para cada um desses objetos; a reflexão filosófica — mesmo aquele cujo esforço é negar a filosofia — lida com outro registro do universo discursivo e com métodos bastante exigentes. Para a filosofia, tudo pode ser questionado, inclusive o próprio valor da filosofia, da ciência etc. Porém, é preciso rigor racional, domínio da história das ideias, honestidade intelectual etc.
Os métodos das ciências são limitados a seus objetos particulares; já os da filosofia partem do horizonte abrangente, sem entraves sociais ou receios ideológicos — isto é: ninguém pode dizer para a filosofia “esse não é o seu lugar de fala, você não pode questionar isso”.
A filosofia tem a totalidade como horizonte de interesse. Claro que muitas reflexões filosóficas podem ser determinadas a certos objetos. Por exemplo: se eu vou questionar os fundamentos da ciência, faço filosofia da ciência; se questiono a religião, filosofia da religião; a história, filosofia da história; a experiência artística, filosofia da arte; a política, filosofia política; e assim por diante.
Contudo, para ilustrar a diferença entre ciência e filosofia, recorro àquela maravilhosa disputa histórica na área da química cujo objetivo era explicar o fenômeno da combustão, que vai da teoria do flogisto, proposta por Georg Ernst Stahl, no século 17, à descoberta do oxigênio, pelo grande Lavoisier, no século 18.
A explicação científica precisa ser construída a partir da análise rigorosa de dados empíricos observados em um processo — nesse caso, o processo químico da combustão. Filósofos não se ocupam de algo tão específico, sua atenção se volta para o abstrato, por exemplo, “o que é a matéria?”; “o que é o tempo?”. O abstrato aqui não pode ser desculpa para devaneios tolos. As perguntas filosóficas são do tipo: “como é possível a ciência?”, “o que é um fato?”, “qual a natureza da identidade e da diferença?”, visto que o objeto da filosofia é a “totalidade”, o “ser”, o “conhecimento”.
O cientista fala a partir do seu conhecimento especializado acerca de um objeto particular e busca explicar detalhadamente a relação entre os fenômenos, suas causas mais genuínas; mas quando o cientista começa a dar pitaco acerca de problemas tão abrangentes, ele está distorcendo os limites da atividade científica, desrespeitando a soberania de certos métodos e ultrapassando as fronteiras de certas áreas de pesquisa. Que faça, pois, filosofia!
Para lembrar uma fórmula de Heidegger, que já gerou bastante equívocos —, a ciência não pensa. E pela quantidade de bobagens que a gente lê por aí sobre a ciência ter superado a filosofia, Heidegger não estava errado. Mas gosto mais de Wittgenstein quando, no final do Tractatus Logico-Philosophicus, afirmou: “sentimos que mesmo que todas as possíveis questões científicas fossem respondidas, nossos problemas vitais não teriam sido tocados”.
Sem dúvida é importante descobrir a cura de uma doença, quais os elementos compõem a matéria, se existe vida em outros planetas, qual a idade do Universo etc., mas isso não é vital. A vocação humana pela busca de sentido, que parte da constatação de que somos mortais e de que não é tão simples saber se a vida realmente vale a pena ser vivida, não pode ser respondida em laboratório. Se ciência explica “como o mundo funciona”, cabe à filosofia a tarefa genuína de manter em dia a pergunta pelo sentido do “ser”, sem banalizá-la.