Ao longo de pelo menos os dois últimos séculos, a democracia se consolidou como um valor político universal e irrecusável. Hoje, qualquer inclinação política contrária à democracia deve ser imediatamente rechaçada como uma ameaça à justiça. Liberais, sociais democratas e republicanos dizem amá-la. Na verdade, quase todos devotam amor a ela. Embora, como dirá Bernard Crick, Em Defesa da política, a “democracia” seja a palavra mais promíscua no mundo dos assuntos públicos.
De qualquer maneira, independentemente do que significa “democracia” e como esses seus “amantes” buscam se satisfazer com ela, autoritarismo, populismo e ditaduras têm em comum o fato de não aceitarem a liberdade como um valor político supremo. Democracia, pelo contrário, é mais do que tudo o regime político da liberdade: da liberdade de crença, da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa e até da liberdade de ofensa. Se você detesta a democracia, é porque detesta a liberdade.
Autoritários, populistas e ditadores amam, além de si mesmos, a ordem acima de tudo, e estão dispostos a usar todos os meios políticos necessários para mantê-la submissa ao próprio domínio. Eles detestam a liberdade. A liberdade sempre será o primeiro valor a ser combatido pela gentalha autoritária que ascende ao poder. O resto é verniz e retórica.
O totalitarismo herda do gnosticismo a concepção de que o mundo precisa ser “corrigido” e “restaurado”
No entanto, nem tudo o que ameaça a ordem democrática significa autoritarismo ou populismo — as duas palavras que atualmente flertam com os analistas da moda. Uma leitura mais adequada dos tipos de visões políticas não permite inferir que autoritarismo ou populismo sejam as únicas ameaças à ordem democrática. Defendo que a concepção totalitária de mundo se impõe como um problema muito mais sutil e perigoso.
Se a política se desenrola em um mundo dominado pelo caos e incertezas, e devido aos limites da natureza humana não conseguimos compreender com precisão geométrica esse desenrolar da política, uma coisa precisa ser considerada a respeito de quem está seduzido pela disposição totalitária: a crença na capacidade e o ardente desejo de transformar a estrutura desse mundo caótico e incerto. A mente totalitária tem horror à desordem e não aceita a condição precária em que se encontra a natureza humana.
Por serem meras categorias descritivas do fenômeno político, “autoritarismo” e “populismo” não dão conta de explicar esse horror ao caos e essa negação da natureza humana. Por isso, seria mais adequado entender que a mentalidade totalitária tem a ver com uma forma perversa de teologia política. Isso significa que não se limita a um fenômeno político, mas que traz em si todos os dramas e tensões de uma consciência religiosa fraturada pelo desespero de restaurar o mundo.
O que eu estou chamando aqui de “forma perversa de teologia política” se refere, em linhas gerais, ao seguinte: um conjunto com uma camada implícita e outra explícita de doutrinas que oferece respostas a todos os níveis vitais da existência humana. Sendo assim, portanto, todos os membros de uma sociedade são exortados a adotar passivamente essas doutrinas, pois a realidade foi revelada como tal para a consciência privilegiada do intelectual político que assumiu para si a missão de iluminar os rumos da história.
Para além de uma concepção do poder e do funcionamento de suas instituições, o portador desse conjunto de doutrinas acredita compreender o mundo em todos os seus níveis. O líder assume a responsabilidade toda para si, um peso monumental. A personalidade política forte capaz de agregar todas as forças necessárias para realizar a transformação mais radical da estrutura do mundo e da história.
Trata-se de uma visão holística da coisa. Como escreveram Juan J. Linz e Alfred Stepan, em A transição e a consolidação da democracia, no totalitarismo “líderes, indivíduos e grupos retiram todo o seu senso de missão, legitimidade e muitas vezes até as políticas específicas de seus compromissos com alguma concepção holística da humanidade e da sociedade”. Todo esforço do ideólogo totalitário pode ser caracterizado segundo o que que Carl J. Friedrich e Zbigniew K. Brzezinski chamaram de “ideologia caracteristicamente focalizada e projetada para um perfeito estado final da humanidade”.
A consequência imediata dessa crença apocalíptica é a destruição de qualquer tipo de dualismo que tece nossas relações e sustentam nossas instituições sociais e políticas: indivíduo x sociedade; espaço privado x espaço público; sociedade civil x sociedade política; Igreja x Estado. Não há mais espaço para essas diferenciações, pois tudo é uma coisa só. Nesse caso, a mobilização deve ser total.
O totalitarismo não se reduz a uma teoria do poder, a uma visão de governo ou a uma teoria do Estado. Antes de ser político, o totalitarismo quer oferecer uma resposta completa aos anseios fundamentais da existência humana. Desse modo, “escatologia” é a melhor palavra para se compreender o que se passa na cabeça de um totalitário, já que é exatamente disso que se trata: dar uma resposta última à toda existência do homem no cosmos, que está “fraturado” e precisa ser “corrigido” pela ação salvífica do líder e do grupo politicamente engajados.
Totalitarismo não significa uma simples narrativa ideológica a respeito de como deve funcionar o governo, a economia, a educação e a segurança em uma sociedade democrática. O totalitarismo, pelo contrário, herda do gnosticismo a concepção de que o mundo precisa ser “corrigido” e “restaurado”. Por isso a rejeição de praticamente todas instituições existentes. Afinal, elas são obras de um “demiurgo maligno”. O totalitarismo é revolucionário nesse aspecto. Na verdade, trata-se de uma revolução permanente, a mais perigosa das revoluções.