Ouça este conteúdo
Em 2014, duas semanas antes do segundo turno das eleições, escrevi um pequeno texto, aqui mesmo para a Gazeta do Povo, chamado “A caricatura da discórdia”. Gostaria de retomar alguns trechos e mostrar para vocês que de lá para cá, em termos de narrativas ideológicas, pouca coisa mudou. Claro, na época Dilma levou a melhor sobre Aécio, e o resto da história todos nós já sabemos.
O texto começava com uma reflexão acerca do uso de termos como “direita” e “esquerda” para se referir ao nosso cenário político. Era um momento de entusiasmo pela ascensão da direita no Brasil, e a esquerda relutava em compreender o fenômeno:
“Pessoas não muito afeitas à política me perguntam como identificar e diferenciar as ideologias de esquerda e de direita. De imediato respondo: evite esses termos. São gastos pelo tempo e pelo imaginário da discórdia. Já não passam de espantalhos, e resquícios da polarização ideológica da Guerra Fria, embora sejam bem mais antigos. De todo modo, são inevitáveis. Muita gente os adota. De intelectuais catedráticos a meninos na puberdade, muitos fazem questão de ser identificados como de esquerda ou direita. Leem autores considerados de esquerda ou direita, descrevem com nostalgia como a vida em países de esquerda ou direita é magnífica, escolhem políticos, escolas, roupas e, no extremo, até namoradas e namorados. Isso para não falar do risco de se ter uma sogra de esquerda ou direita. Até ontem, pegava muito mal estar associado à direita; hoje, virou motivo de orgulho. Por outro lado, os desacreditados intelectuais de esquerda precisam reafirmar que a esquerda não teme dizer seu nome. Trata-se de uma questão de identidade. Prova de que o desejo de autoafirmação política ultrapassa os limites dos rótulos.”
O problema da discordância política no interior do espaço da sociedade é a narrativa apocalíptica das facções que imaginam viver numa decisiva guerra do bem contra o mal
A ideia de que o país está polarizado não é de agora. Aliás, política, como arte do possível e da negociação, depende da dinâmica da discórdia. Entretanto, o problema da discordância política no interior do espaço da sociedade é a narrativa apocalíptica das facções que imaginam viver numa decisiva guerra do bem contra o mal. Direita e esquerda deixam de ser compreendidas como perfis ideológicos para se tornarem perspectivas salvíficas. Em 2014, “fascista” e “comunista” eram rótulos que prestavam esse serviço:
“Sempre e invariavelmente, quem se orgulha da esquerda chamará de ‘fascista’ todos aqueles que não são ou desprezam a esquerda. Não interessa se o seu oponente for um liberal defensor da economia de mercado, um entusiasta do Estado mínimo, um católico distributivista ou um anarquista convicto. Para quem é de esquerda, não ser de esquerda é ser fascista. O que significa: ser simpatizante de ditador nacionalista, elite branca e torturador xenofóbico. Por outro lado, os de direita adotam o termo ‘comunista’ para os seus desafetos. O comunismo tem nesse contexto o mesmo peso constrangedor de chamar alguém de nazista. Não interessam as radicais diferenças históricas entre os dois regimes totalitários, não interessa a variedade histórica dos ‘comunismos’. Só interessa uma coisa: a associação ao imaginário de morte e terror. Ser comunista é ser genocida e totalitário. E é isso o que seu amigo de direita pretende dizer quando chama você de comunista.”
O importante era identificar culpados pela trágica situação em que vivemos. O inimigo é inimigo por carregar a marca da culpa. A paixão política mobilizadora precisa de bode expiatório:
“A esquerda odeia a ‘classe média’ mais que tudo. Ódio explícito: a classe média é a razão para toda desgraça do país. Da enchente à falta d’água, do trânsito nas metrópoles à violência relacionada ao tráfico de drogas, do caso de suspeita de ebola à cracolândia. Não interessa: a classe média é o bode expiatório da esquerda. Se você, da classe média, for roubado, sequestrado ou queimado por bandidos, lembre-se sempre: para o seu amigo de esquerda, a culpa será sempre e inevitavelmente sua. Já a direita tem uma tendência menos explícita para identificar culpados. Por isso, está sempre à procura de ‘agentes ocultos’ e tem preferência por explicações de teor conspiratório. A culpa não é totalmente sua, você é só mais um idiota útil servindo à Nova Ordem Mundial, ao Foro de São Paulo ou ao marxismo cultural, cujos agentes estão infiltrados na Igreja Católica, no MEC, na maçonaria, na festa junina. Enfim, a sua única responsabilidade é a de ser um idiota.”
Depois de oito anos, o que mudou? Eu não sei você, caro eleitor, mas a minha impressão é a de que a estrutura do problema continua a mesma. Minha humilde sugestão também: não deposite suas esperanças em políticos.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos