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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Filosofia política

A natureza cristã do Estado Laico

Do Estado laico aos direitos humanos, a influência do cristianismo está por todo o Ocidente (Foto: Pixabay)

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A respeito da nossa concepção teológica de mundo, há somente três possibilidades: teísmo, panteísmo ou ateísmo. O teísmo estabelece uma relação de diferença fundamental entre Deus, soberano, e o Mundo. Deus não tem uma relação de dependência com o mundo, mas o mundo tem uma relação de dependência com Deus. Deus criou o mundo por amor e vontade livre, não precisa do mundo para ser o que é. Portanto, a noção importante é a de criatura. O Mundo é criação de Deus. Por isso, Deus e Mundo são radical e ontologicamente distintos. No cristianismo, ou seja, no teísmo bíblico, só Jesus Cristo pode ser o mediador.

No panteísmo, Deus e Mundo são idênticos. Deus depende do mundo para ser Deus e o Mundo depende de Deus para ser Mundo. Não há relação de criação, mas um único e mesmo processo cósmico. Não houve “criação”, Deus não foi livre para criar o mundo por vontade, suprema bondade e amor. Gerou o mundo por necessidade. O Mundo (ou Deus) é causa de si mesmo e eterno. E o homem não tem livre arbítrio. Seu ato supremo é o de conhecimento desse processo necessário. Parte fundamental desse longo e eterno tecido cósmico. Logo, não há necessidade de um mediador salvador. Embora mera parte, o homem salva a si mesmo.

Antes de Estado laico significar a garantia da autonomia do Estado no que diz respeito à fundamentação de sua ordem jurídica, ele significa a garantia da autonomia e da liberdade de o cristão ter dupla cidadania: a da Cidade dos Homens e a da Cidade de Deus

Por sua vez, no ateísmo o mundo basta em si mesmo, assim como o homem. A matéria é fruto de um mero acaso e não há possibilidade nenhuma de sentido ou propósito na realidade. No ateísmo, tudo é contingente. O homem não tem uma natureza pré-condicionada ou determinada, está em uma dada condição. Molda sua vida como bem entende e deve levar em consideração a desagradável constatação de absurdidade dessa existência. É suficiente na medida de sua finitude. Nada mais que isso. Só isso. Um pequeno deus de sua misericordiosa grandeza e miséria.

Agora, como fica a formação do Estado num mundo pluralista governado por essas três visões em conflito? Bom, o Estado deve ser laico; logo, não deve optar por nenhuma dessas concepções teológicas. Se a religião é a expressão última da cosmovisão de um homem e todo homem tem uma cosmovisão, portanto todo homem, em última instância, tem uma concepção teológica de mundo – até mesmo o ateu. E ter uma concepção teológica de mundo implica em uma ética como um sistema de valores no qual está fundamentada e qualificada a conduta humana para um finalismo último.

Se a ação política depende de uma ética, então depende de uma cosmovisão. Ora, se o Estado não deve optar por uma visão teológica de mundo, também não deve optar por nenhum sistema de valores e, consequentemente, não pode fundamentar uma ação política. Como é possível um Estado laico sem pessoas agindo por convicções éticas acerca de suas responsabilidades, senso de justiça etc.? A neutralidade do Estado é um sonho liberal irrealizável. Ou apenas realizado como religião política liberal de indivíduos autodeclarados pequenos deuses de si. Sem diferenciação entre reino de Deus e reino dos Homens.

Ora, a religião cuja expressão teológica insere uma diferenciação fundamental entre Reino de Deus e Cidade dos Homens é o cristianismo. O Estado nunca poderá ser um todo soberano.

Para entender melhor meu argumento, recomendo dois livros sobre Jesus: Jesus – Uma biografia de Jesus Cristo para o século XXI, de Paul Johnson; e Jesus de Nazaré – do Batismo à Transfiguração, do papa Bento XVI. Vejamos o seguinte: Jesus (a despeito de ter ou não existido; vamos imaginar que existiu) é compreendido no sistema de crença cristã como um homem real e histórico que anuncia que o verdadeiro reino não é deste mundo.

Para os cristãos, Jesus é homem e ao mesmo tempo Deus. Para fins de argumentação, a querela teológica acerca das duas naturezas de Cristo, humana e divina, será irrelevante aqui já que, pelo menos para este contexto de discussão, Jesus nasceu, viveu e morreu como homem. Foi condenado, julgado e executado como homem. Inclusive ressuscitou como homem. Caso contrário, Cristo seria um ideal místico. Pode até ser uma invenção, no entanto é uma invenção que leva muito a sério o fato histórico de sua existência, da existência de sua mensagem, de sua condenação, morte e, sobretudo, ressureição.

A soberania da Cruz laicizou e secularizou a soberania de todo Estado a fim de garantir e proteger o direito de manifestações públicas dos cristãos martirizados na época do Império Romano. Assim, antes de Estado laico significar a garantia da autonomia do Estado no que diz respeito à fundamentação de sua ordem jurídica, ele significa a garantia da autonomia e da liberdade de o cristão ter dupla cidadania: a da Cidade dos Homens e a da Cidade de Deus.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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