• Carregando...
Detalhe de retrato do filósofo John Locke pintado por Godfrey Kneller.
Detalhe de retrato do filósofo John Locke pintado por Godfrey Kneller.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

Em uma discussão recente aqui em nossa coluna, a observação de um leitor chamou minha atenção: “A moralidade é objetivamente definida a partir da definição (explícita ou implícita) das metas que a sociedade pretende atingir. As metas são subjetivas e mudam ao longo do tempo. Pode-se dizer, sim, que é evolução natural. Até o advento do Iluminismo e do Estado laico, a preocupação básica era garantir o poder do déspota de plantão”. Já disse e repito que respeito e me entusiasmo com algumas observações críticas de leitores que pensam diferente de mim. Se um jornal deve fomentar algo, é justamente o debate de ideias opostas para não se tornar meramente um panfleto ideológico.

Vamos lá. De fato, a moralidade é sustentada pelas metas que uma sociedade deseja alcançar. Até certo ponto, não discordo da sentença. No entanto, afirmar que essas metas são puramente subjetivas e mudam continuamente ao longo do tempo ignora o longo debate filosófico a respeito da fundamentação dos valores éticos. Principalmente aquela longa discussão acerca da diferença entre a ordem dos fatos e do dever ser. Noutros termos, dizer que as coisas são assim e assado não significa dizer que deveriam ser assim e assado.

Sentenças morais são sempre sentenças imperativas. Isso significa que agir moralmente implica em obedecer a ordem do dever ser. A distinção entre “ser” e “dever ser”, explorada por filósofos como de David Hume, aponta para uma importante separação entre a descrição do que existe e a prescrição do que deveria existir. Esse abismo metaético entre os estados de coisas reais e os ideais normativos é fundamental, pois permite a crítica da realidade existente a partir de princípios éticos universais. Assim, enquanto a ordem dos fatos descreve o mundo como ele é, a ordem do dever ser nos guia sobre como o mundo poderia e deveria ser, segundo critérios éticos que ultrapassem as contingências temporais e culturais.

O advento do Iluminismo, por mais secular que pretendeu ser, não pode ser interpretado sem o lastro cristão

Vamos considerar dois exemplos históricos onde a distinção entre “ser” e “dever ser” se mostra crucial para entender as implicações éticas de práticas sociais. Um, sem qualquer resquício da cultura iluminista; e outro, que nasceu no seio (mas não necessariamente em virtude) do Iluminismo.

Em diversas culturas indígenas, práticas como o infanticídio eram e, em raros casos, ainda são realizadas por razões que incluem a sobrevivência do grupo, condições físicas da criança, ou até a preservação de tradições. A descrição desse fenômeno nos informa sobre uma realidade cultural específica. No entanto, sob uma perspectiva do "dever ser", esse ato pode ser questionado eticamente. As normas universais de direitos humanos, por exemplo, contrastam contra o infanticídio e quando afirmam o valor universal da vida humana acima das condições contingenciais ou culturais. Este conflito destaca a tensão entre relativismo cultural e normas éticas universais.

O Holocausto é um exemplo extremo de uma “meta social” adotada por um certo regime totalitário, onde o extermínio de milhões de pessoas foi sistematizado e sustentado pelas “metas sociais” daquela sociedade específica. Essa prática, claramente explicada e documentada (portanto, como ordem de ser), representa uma das mais terríveis realizações de uma política estatal. Porém, sob a ótica do “dever ser”, fica evidente a monstruosidade moral do Holocausto. Sob a perspectiva de uma ética universal, tais atos devem ser sempre condenados em todos os mundos possíveis; afinal, a dignidade intrínseca e os direitos inalienáveis de todos os seres humanos, independentemente de sua etnia, religião ou qualquer outra característica, funcionam como ideias normativos.

A crítica do leitor também ignora que bem antes do Iluminismo as raízes do Estado laico e da moralidade objetiva já estavam sendo plantadas e fertilizadas por princípios cristãos.

A propósito, não se pode falar de Iluminismo no singular; há muitos iluministas profundamente cristãos. Darei apenas dois grandes exemplos: John Locke e Immanuel Kant. Esses autores, de fato, não são de uma devota religiosidade católica e defensores de uma ordem social tradicional, porém não se pode negligenciar que suas obras foram alicerçadas em fundamentos cristãos.

John Locke articulou a filosofia política com sua fé cristã. Ele via a razão como uma dádiva divina essencial para entender o mundo e a moralidade. Locke defendia a ideia de direitos naturais, como vida, liberdade e propriedade, como dados por Deus e, portanto, inalienáveis. A sua noção de governo civil se baseava no consentimento dos governados e refletia sua crença na igualdade fundamental entre os homens sob o olhar de Deus. Sua perspectiva filosófica foi decisiva para o liberalismo moderno e a formulação de estruturas governamentais democráticas.

Por sua vez, Kant desenvolveu uma das mais importantes filosofias morais modernas influenciadas por princípios cristãos. Sua famosa formulação do imperativo categórico, que instrui agir apenas de acordo com aquela máxima pela qual você pode ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal, é um exemplo de como a ética cristã pode ser racionalmente sustentada. Kant argumentava que, mesmo se a razão não demonstra a existência de Deus e a imortalidade da alma, ela fornece uma justificativa moral para crermos nelas, visto que tais crenças reforçam o dever moral e a necessidade de justiça, que poderia ser plenamente realizada em um reino espiritual ou em uma existência futura. Em outra de suas formulações, Kant estabelece que devemos agir de maneira a tratar a humanidade, tanto na própria pessoa quanto na pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo tempo como um fim e nunca simplesmente como um meio. Esta é uma clara expressão do imperativo categórico na formulação do “fim em si mesmo”, sublinhando a dignidade de cada indivíduo, que não deve ser instrumentalizada ou explorada.

Só esses dois grandes exemplos já demonstram que o advento do Iluminismo, por mais secular que pretendeu ser, não pode ser interpretado sem o lastro cristão. Na semana que vem, tratarei da origem cristã do Estado laico.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]