Cedo ou tarde, a gente descobre que viver com os outros não é fácil. Os mimados resistem à ideia, mas é fato incontornável que ninguém nunca teve a oportunidade de pedir para nascer. Nascer não é opção. Para piorar o enredo, quando a gente nasce, tudo está aí: das leis da natureza ao perfil da cultura em que cada um de nós foi jogado. Em certo sentido, há um mundo dado, que não é estático e completo, mas um mundo aí em constante movimento diante de cada um de nós e sendo movimentado por todos nós. Ninguém inventou o mundo. Embora as nossas experiências pessoais adicionem fatos novos, nada do que vivenciamos brota do nada. Há sempre um palco, uma fonte simbólica para nossa vida em busca de significado, um pano de fundo.
Ser histórico, que participa e fundamenta uma comunidade moral, significa dizer que o ser humano vive em um lugar e em um momento, num contexto, numa cultura e num horizonte de expectativas que delimitam e constituem o mundo de cada um de nós. Para ser mais preciso, há na verdade uma pluralidade de mundos e cada um deles possui uma quantidade incomensurável de caraterísticas que nos influenciam ao longo de toda nossa vida. Inúmeras dessas características serão herdadas da natureza por puro acaso — e não adianta reclamar, pois a natureza é autoritária e não cede fácil aos nossos caprichos. Outras características serão mais sutis e virão da cultura, também frutos do acaso, da dinâmica irregular e acidental da vida em sociedade.
Ao nascer, cada um de nós tem pelo menos um pai, uma mãe, dois avôs, duas avós, quatro bisavôs, quatro bisavós. Além disso, é bem provável já ter um ou mais tios, uma ou mais tias, um ou mais irmãos. Fora os vizinhos, sejam mais próximos ou distantes. O bairro. A cidade. A nação. Enfim, nascer é despencar em algum lugar habitado, com uma cultura viva, com memórias e expectativas. Regras. Governo. Pessoas. Muitas regras, muitas formas de governo, muitas pessoas. Os inevitáveis pais e os prováveis tios, tias, irmãos e vizinhos já possuem gostos musicais, falam um determinado idioma, dão risadas por banalidades, choram, torcem para algum time, comem e rezam. Uns se odeiam, outros se amam, uns trabalham outros só estudam, uns pagam impostos, outros sonegam impostos.
Quando a gente nasce, vem o título: “Você é filho de fulano, nasceu na cidade tal, seus avôs são esses e certificamos a sua chegada”. O nome é a referência fundamental para romper com a redutora — e para alguns, sedutora — ideia de que se é tão somente uma coisa. O nome será o verdadeiro acesso a uma “comunidade de pessoas”, a um mundo. Nosso nome nos acompanhará por toda vida e para além dela. Ninguém estampa na sepultura: certa coisa jaz aqui. Ser pessoa é ter rosto e nome. Nenhum homem é um indivíduo “soberano”, já que nenhuma pessoa é autossuficiente, por definição. Ser pessoa significa ser singular, precário, frágil e insuficiente, isto é, um ser que depende de outros, que aprende com os outros.
Tudo isso revela algo muito simples a respeito da condição humana: não somos uma unidade essencial fechada em nós mesmos. Tampouco somos só a parte do todo. Individualistas e coletivistas estão errados. Nem indivíduos fechados em si mesmos e nem diluídos em uma “unidade” coletiva. A humanidade do homem — a principal característica que faz de um amontoado de células um humano — consiste, justamente, em ser uma pessoa e não uma coisa. A realidade pessoal de um homem é um dado intrínseco de irreversível, profundo e irredutível valor. Isso significa que não se existe como abstrações: não existe “o indivíduo”, não existe “o coletivo”. Indivíduo e coletivo não são entidades concretas. Só a vida pessoal tem realidade concreta.
Pessoas revelam uma realidade, literalmente, encarnada. O que há é João, José, Maria, Ana, Pedro, Miguel, Daniel. Há o fato de João ser filho de Paulo, que estudou com Gabriel, filho de Alberto, e amigo de Luiz, um velho conhecido de infância que namorou a prima de Juliana, uma menina antipática da primeira série cuja mãe sabia fazer bolo de laranja com cobertura de chocolate. A mãe aprendeu com a avó, cujo marido foi morto na Segunda Guerra e deixou uma pequena herança pra família que torrou o dinheiro para pagar dívidas…
Levando tudo isso em consideração, é possível entender o anúncio cristão quando fala aos pobres, aos excluídos e às minorias. Os leprosos foram exemplos mais marcantes. Lázaro — e não a ideia abstrata de um doente — fez Jesus chorar. Para Cristo, o pobre não se reduz a uma categoria sociológica, o doente não se reduz a uma categoria médica, o excluído não se reduz a uma categoria ideológica. Os movimentos ideológicos seculares — que abandona o sentido salvífico do sofrimento —, em nome dos excluídos e marginalizados, reduzem a pessoa a categorias que lhes convém. Tudo passa a ser assistencialismo. Promessas desencarnadas e descontextualizadas.
João, que é pobre, passa a ser tratado como “o pobre”; Maria, que tem a pele negra, passa a ser tratada como “uma mulher negra”. Freddy Mercury, ou Farrokh Bulsara, filho de Bomi e Jer Bulsara, passa a ser “gay e imigrante” e não o músico talentoso nascido na Zanzibar e vocalista do Queen, uma das mais importante bandas de rock. Para essas formas reducionistas, portanto ideológicas de pensando, não faz sentido falar em pessoas, em seus talentos e dramas reais. Na ideologia, destroem-se os rostos e sepultam-se os nomes. Eis a pobreza da ideologia: as pessoas não passam de uma mera engrenagem funcionando dentro dessa dinâmica cega da relação bélica entre “opressor-oprimido”, de “vítima-algoz”, cujo destino só poderá ser conduzido pelo sacerdote da justiça que promete aniquilar o opressor e libertar, definitivamente, o oprimido.