Paradoxalmente a peste fez muitas máscaras caírem. Dentre os desmascarados pela doença respiratória (doença que em alguns meses já matou mais de 20 mil pessoas só no Brasil), o individualismo liberal se revelou não só o mais impotente como também cúmplice de populistas fanatizados. Da ardente e irresponsável defesa da cloroquina ao desejo nefasto e inconsequente de armar o povo para enfrentar governadores e prefeitos que decretassem medidas de isolamento social, quem mais tem se comprometido com os delírios de grandeza desse governo, além da vanguarda reacionária já conhecida, senão, justamente, os nossos liberais?
Só uma aguda doença do espírito — curiosamente pneuma em grego é literalmente espírito ou respiração — para fazer alguém confundir nacionalismo messiânico com patriotismo, bravatas autoritárias com virtude cívica, defesa do armamento de milícias com a genuína discussão acerca do direito de posse de armas para legítima defesa pessoal, desumanização de adversários políticos com a defesa de valores cristãos e tantas outras subversões semânticas envolvendo “liberdade”, “povo” e “Deus”.
Como pode defensores de uma consolidada tradição de liberdades individuais não só aceitarem ser liderados como se curvarem a um presidente nitidamente autoritário, politicamente descontrolado e moralmente perverso no gerenciamento de uma das piores crises sanitárias desse século? Talvez porque — e esse é uma hipótese — o liberalismo defendido por aqui, no ápice de sua realização e conquista política, torna-se, enquanto doutrina social autocentrada no indivíduo, impotente em se opor à sedução de um líder forte que toma as rédeas do poder e dita, amparado por seus intelectuais orgânicos e bajuladores, os rumos narrativos da triunfante e quixotesca vontade do povo.
Registro que liberalismo, populismo ou comunismo (ou qualquer outro ismo) no palco das pretensões políticas não foram os responsáveis pela peste do dia. No entanto, muitos dos partidários fervorosos — implícitos ou explícitos — de suas ideologias delirantes acreditam nelas como uma espécie de forma natural da evolução política mais bem preparada para vencer o avanço da doença desde que, primeiro, sejam identificados e eliminados seus adversários políticos, os verdadeiros parasitas responsáveis pela degradação da sociedade. A pandemia é também de rivalidades.
Como meu interesse crítico aqui é tratar especificamente da traição dos liberais e, portanto, do fracasso do liberalismo expresso nesse pacto com reacionários, faço questão de reafirmar que não considero os liberais ou o liberalismo os responsáveis pela peste, tampouco os próprios reacionários. Contudo, acredito que uma certa matriz liberal falsifica a experiência política enquanto defesa de direitos fundamentais e se torna permissível, porque apaticamente cúmplice, às paixões mobilizadoras do nacionalismo bolsonarista.
Mais do que qualquer outro grupo hegemônico na construção do ambiente público, os liberais, seduzidos pela conquista da autonomia e da soberania dos direitos individuais, não notaram que foram precisamente o compromisso cego a esses ideais os responsáveis pela sua própria apatia moral. Uma vida política fundamentada na soberania do indivíduo e no exercício desses desejos garantido pelo aparato legal do Estado produziu nada mais nada menos do que a percepção, ideologicamente legítima só que impotente, de que cabe a cada indivíduo cuidar de sua vida e de seus interesses e que se danem os outros.
Se é um direito do indivíduo tomar cloroquina, por que não pode tomar cloroquina? Se é um direito do indivíduo não usar máscara, por que o indivíduo é obrigado a usar máscara? Se o Estado não pode interferir no livre mercado, por que o Estado proíbe o indivíduo de abrir seu estabelecimento comercial no período de quarentena? Se o indivíduo quer usar arma para se proteger dos tiranos, por que o indivíduo não pode usar arma para se proteger dos tiranos? Se o Estado é laico, por que o Estado proíbe as igrejas de abrirem?
A mentalidade liberal simplesmente não dá conta de resolver essas perguntas exceto para formulá-las com quietismo submisso e até, em alguns casos, bajulador. Sua defesa míope da ideia do indivíduo autossuficiente e única minoria mínima merecedora de proteção legal não vê sentido na experiência de bem comum, comunidade moral, cidadania ativa, virtudes cívicas, distinção entre espaço privado e espaço público etc. E por isso não enxerga os riscos de se entregar, de corpo e alma e mão beijada, a um governo de personalidade escancaradamente autoritária.
O resultado do liberalismo não poderia ser outro senão aquilo que descreveu Patrick J. Deneen em seu “Por que o liberalismo fracassou?” (Editora Âyiné, 2019): “o atual desejo amplamente difundido por um líder forte, que queira retomar o controle popular sobre as formas liberais de governo burocratizado e a economia globalizada, surge depois de décadas de desmantelamento liberal das normas culturais e dos hábitos políticos essenciais para o autogoverno”, pois “o liberalismo criou as condições, e as ferramentas, para a ascensão de seu pior pesadelo, e no entanto ele não tem a autocompreensão necessária de entender sua própria culpa”.
Historicamente o liberalismo inventou a solidão moderna. Para ser mais preciso, a solidão moderna é um epifenômeno espiritual da ordem liberal individualista, que significa a forma degradante de o indivíduo coexistir com a multidão e ainda assim se sentir isolado. Afinal, não foi justamente o liberalismo a ideologia responsável pelo fosso entre indivíduos e Estado, que negou o valor público do exercício da religião com sua ideia de laicidade, que fez da maximização do bem-estar material o supremo bem para o desenvolvimento pessoal e que deu ao indivíduo — essa abstração teórica — o direito de não participar da vida da polis se assim desejar?
No caso brasileiro, essa solidão e quietismo espiritual não conseguiram impedir os próprios liberais de resistirem aos feitiços da retórica inflamada, do culto à personalidade e da obediência cega a um líder populista maldisfarçado de líder conservador único capaz de restaurador a ordem, a segurança e — olha só que ironia — as liberdades individuais contra os ditadores.