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A vida de um inseto nojento

Foto: Bill Davenport/Free Images (Foto: )

Diferentemente do que o lugar-comum possa pensar, o tema do aborto deve ser tratado como um problema específico da capacidade humana de justificar racionalmente opiniões e escolhas. Perdão ao meu excesso de confiança, mas o assunto é de natureza filosófica. Atualmente, o debate público do aborto é pobre, triste e sujo. Pobre por ser cada vez mais reduzido a uma agenda ideológica; triste por estar cada vez mais no domínio da ignorância retórica; e sujo por ser tratado como a conquista de um direito.

Quem defende o aborto tem o ônus de demonstrar por que a vida humana em condição embrionária não participa da comunidade moral. Deve responder com honestidade: por que o embrião não deve ser considerado uma pessoa digna de respeito e proteção legal? Essas perguntas não podem ser respondidas com palavras de ordem e discursos evasivos. Ou o embrião é uma pessoa ou não é. Eis o tipo de dilema que não tem meio termo.

Em filosofia, o assunto do aborto vem sendo tratado de duas maneiras distintas, porém complementares. A primeira abordagem pergunta pelo estatuto antropológico e moral do embrião. Se o indivíduo humano, em estado intrauterino, for concebido como pessoa, a este mesmo indivíduo deverá estar garantido, como é garantido para qualquer outro indivíduo humano, o direito à vida — como um direito fundamental e inalienável. A segunda abordagem traz para o centro do debate a autonomia do corpo da mulher. Mesmo o embrião sendo uma pessoa, a mulher teria o direito de interromper a gravidez apenas por ser a dona do próprio corpo.

Hoje em dia, a estratégia retórica dos ativistas pró-aborto consiste em desqualificar qualquer um que tente defender o estatuto do embrião. Eles sabem vender a ideia de que quem concebe o embrião como pessoa minimiza o valor da mulher; de que valorizar a vida do embrião implica desvaloriza a liberdade da mulher.

Para fortalecerem esse raciocínio, esses ativistas amparam suas crenças em estatísticas duvidosas a fim de consolidar a ideia de que o aborto é uma urgente questão de saúde pública. Mulheres morrem ao fazer ao aborto em clínicas clandestinas. Ser contra o aborto significa corroborar a morte dessas mulheres. Por sua vez, liberar o aborto não só diminuirá o número de mortes de mulheres em virtude do aborto clandestino como também diminuirá — vejam vocês! — o número de abortos. Portanto, concluem gloriosos de uma certeza infalível, quem é contra o aborto deve ser a favor do aborto.

O deputado federal Jean Wyllys, em artigo para o El País, chegou a comemorar a decisão da Câmara dos Deputados na Argentina, que votou pelo direito de as mulheres poderem abortar até a 14.ª semana de gestação, como um “debate lindo”.

Segundo ele, “debate foi lindo de se ver. Houve, é claro, alguns discursos bizarros, como há no parlamento brasileiro, mas também houve dezenas de excelentes argumentações jurídicas, políticas e filosóficas. Três ministros da Saúde (o atual, do governo Macri, e dois ex-ministros de Néstor e Cristina Kirchner) expuseram suas opiniões nas audiências públicas prévias à sessão e defenderam a legalização do aborto com dados e estatísticas que mostram que é uma questão urgente para a saúde pública. Os ministros explicaram que a proibição do aborto não reduz sua prática, que o aborto clandestino é a principal causa de mortalidade materna e que os países que legalizaram reduziram não só esse índice, como também, inclusive, o número de abortos”.

Traduzindo. Por “debate foi lindo”, ele entende “minha causa saiu vitoriosa”, caso contrário ele estaria chamando os argentinos de fundamentalistas, dogmáticos e machistas — lembrando que o placar foi apertado: 129 contra 125. Por “discursos bizarros”, quer dizer “todo discurso de que eu discordo”. Mais fácil desqualificar do que analisar. Por “dezenas de explanações jurídicas, políticas e filosóficas”, Jean Wylly quer dizer “tudo o que corrobora com as minhas expectativas pró-aborto é científico; o que contraria é bizarro”. Por exemplo: dados estatísticos que mostram o quanto é uma questão urgente para a saúde pública e que a proibição não reduz sua prática — como se esses fossem os reais problemas em jogo no debate do aborto.

Praticamente, passei os meus últimos seis anos dedicados a explicar o porquê de o aborto ser um problema moral de natureza filosófica e, precisamente por isso, não poder ser reduzido a um problema de saúde pública. Essas reflexões foram publicadas num livro chamado Contra o Aborto, publicado em dezembro de 2017 pela Editora Record. Basicamente, defendo o seguinte: Estamos diante de dois direitos fundamentais aparentemente em conflito: o direito à vida e o direito à liberdade — mas esse conflito é só aparente. Não há direito de autonomia do corpo. O corpo da mulher não é uma propriedade da mulher, mas é a própria manifestação de sua pessoa no mundo. Uma pessoa é, acima de tudo, o seu corpo. Uma mulher não tem corpo, ela é corpo. Não há a liberdade da vontade de um lado, como algo ativo, e, doutro lado, o corpo, como uma realidade passiva. Isso é dualismo dos mais grosseiros. Eu não tenho um corpo só depois de me tornar consciente; na verdade, eu sou meu corpo desde o momento da concepção.

O argumento padrão da impossibilidade moral do aborto se fundamenta em duas premissas básicas. Uma premissa moral autoevidente: “todas as pessoas têm direito à vida”; e uma premissa antropológica: “o ser humano é, desde a concepção, uma pessoa, cuja forma de manifestação no mundo é o corpo”. A propósito, uma mulher adulta que luta pelo direito de abortar tem dignidade por ser uma pessoa desde a concepção. Ninguém concedeu essa propriedade a ela por decreto político, e nenhum decreto político poderá tirar essa propriedade dela.

Do estatuto antropológico do embrião pode-se alegar o seguinte: está vivo e é humano. Um embrião atende aos critérios determinados pela biologia: trata-se de um organismo vivo e indubitavelmente da espécie humana. No entanto, o mais importante, é que atende a um critério antropológico: é um indivíduo cuja capacidade de autodesenvolvimento para a vida racional e consciente futura é inerente à sua própria condição corporal embrionária.

A dignidade de uma pessoa não muda conforme as mudanças biológicas. A descrição dos processos biológicos depende, antes de tudo, de um critério antropológico: ser uma pessoa cujo valor de dignidade permite ser reconhecido como membro de uma comunidade moral — por isso uma mulher, quando descobre sua gravidez, não diz “estou grávida de uma entidade biológica”, mas pode dizer com absoluta certeza “estou grávida de um filho”, e dessa experiência sentir as incomensuráveis alegrias e os complexos desafios da maternidade.

O argumento da autonomia do corpo da mulher esbarra numa dificuldade irresistível: o corpo do embrião é objetivamente distinto do corpo da mulher. Embrião também é corpo. Posso não “vê-lo” como vejo a face de um amigo diante de mim, mas não posso negar, a não ser por força de falsificação ideológica, ou reduzir, a não ser por presunçosas e redutíveis sentenças científicas, a experiência decisiva de estar diante de um centro a partir do qual se estabelecem relações humanas efetivas. Uma mulher grávida já poderá anunciar para o seu companheiro: “você é pai”. A relação entre mulher e embrião é pessoal, de mãe e filho. O “rosto oculto” de um embrião é um “rosto presente” e, por ser rosto, faz emergir de sua presença pessoal relações interpessoais.

A autonomia do corpo próprio da mulher não pode subjugar, a não ser por um inconsequente ato de violência, a autonomia do corpo próprio do embrião. Tentar fundamentar o direito ao aborto como um direito à autonomia do corpo da mulher esconde o desejo tirânico de subjugar e destruir o mais fraco pelo poder do mais forte.

Os defensores que comemoram a liberação do aborto, em geral, tendem a negligenciar que o que está em jogo em toda essa polêmica não é outra coisa senão a experiência de como a nossa atual cultura de sentimentalismo permissivo se relaciona com a vida humana em suas condições mais extremas e frágeis. Aquele que mereceria de nós, adultos, mais cuidado e responsabilidade é tratado com desprezo e indiferença. Não à toa os ativistas comemoram o suposto direito de uma mulher esmagar o próprio filho no ventre, como se a vida de uma pessoa nessas condições fosse nada mais nada menos do que a vida de um inseto nojento e desprezível.

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