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“Analogia do violinista”, formulada décadas atrás, não serve para atestar tolerância das pessoas ao aborto.
“Analogia do violinista”, formulada décadas atrás, não serve para atestar tolerância das pessoas ao aborto.| Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney

A Ilustríssima publicou um artigo defendendo o aborto, assinado por Álvaro Machado Dias e Hélio Schwartsman. Eles tocam em vários temas e usam espantalhos contra conservadores pró-vida. Analisarei apenas a abordagem apresentada de um experimento mental – a analogia do violinista – utilizado por eles para fundamentarem uma pesquisa de opinião e, partir daí, concluírem que a maioria dos brasileiros defende o aborto.

Os autores concluíram que, quando as pessoas são submetidas a tais experimentos mentais, elas tendem a defender a autonomia da mulher em detrimento da vida do embrião. Porém, os experimentos apresentados, além de não serem inéditos, falham em traduzir a experiência do que de fato é um aborto. Nesse sentido, induzem a resposta dos entrevistados ao erro. Eles, portanto, falharam em suas conclusões por uma razão simples: deformaram a percepção das pessoas a respeito do que é, efetivamente, um aborto.

Analisemos só o primeiro experimento. Dias e Schwartsman escrevem:

Nossa proposta, neste texto, é despir a questão do aborto de todas as considerações do mundo real e tentar analisar (e medir) apenas os raciocínios morais que a fundamentam. Os resultados dão o que pensar.

Os experimentos mentais usados para “provar” que os brasileiros aceitam o aborto falham em traduzir a experiência do que de fato é um aborto, induzindo os entrevistados a erro

Comecemos com o seguinte experimento mental:

Isabela acordou certo dia com vários médicos ao redor dela. Ainda meio assustada, percebeu que estava conectada por uma longa cânula a uma outra pessoa, que repousava na cama de sua irmã, a qual abandonara o lar em nome de uma paixão fulgurante. Quem seria aquele homem de aparência amarfanhada, ao qual se ligava pelo pulso? Puxando pela memória, deu-se conta de que era Sivius, o maior violinista do mundo – a estrela do concerto a que assistira dois meses antes.

A moça começava a achar graça naquilo tudo, quando o chefe dos médicos cortou o seu barato. ‘O Sivius sofre de uma doença sanguínea rara, e nós identificamos que você é a única pessoa do mundo com a composição biológica adequada para lhe salvar a vida. Não deu tempo de explicar, pois a morte dele era iminente. Peço desculpas. De todo modo, o caso é que ele precisa de seis meses de conexão contínua com o seu organismo para poder curar-se e sobreviver. O mundo agradeceria se você pudesse fazer isso por ele e pelas artes’.”

Qual o problema desse experimento e, portanto, da pergunta formulada a partir dele? Primeiro, esse argumento é uma formulação romanceada da famosa “analogia do violonista”, proposta pela filósofa Judith Jarvis Thomson, em 1971. O problema central do argumento de Thomson é discutir a legitimidade do altruísmo compulsório, sobretudo em casos de estupro – por exemplo. A grande conclusão de Thomson é a seguinte: mesmo que o feto seja considerado uma pessoa com direito à vida, não significa automaticamente que é moralmente errado realizar um aborto.

Os autores da Folha reformularam esse argumento para perguntar o seguinte: “Isabela deve manter-se conectada ao artista?” A maioria dos entrevistados, obviamente, respondeu que não.

A partir daí, os autores imaginaram uma suposta réplica dos conservadores pró-vida. Segundo eles, a objeção pró-vida seria a de que “Isabela não provocou a conexão com o grande músico. Já a mulher que faz sexo sem proteção expõe-se ao risco de engravidar. Os cenários seriam diversos”. Portanto, isso seria uma falsa analogia. A tréplica dos articulistas foi: “Mas aceitar que não existe a obrigação de salvar o violinista implica concordar com a tese de que o aborto deve ser legal quando há estupro, afinal, não há participação deliberada da mulher, assim como quando há falhas do método anticoncepcional, coisa que sabidamente acontece”.

Não é surpreendente que a conclusão deles seja a seguinte: Como a questão prática envolve um dispositivo legal, chega-se à mesma conclusão da autora com a qual discordam: o aborto deve ser assegurado como um direito feminino, pelo menos em algumas situações.

Há uma diferença moral entre evitar danos e causar danos. No aborto, a morte de uma pessoa é intencional, o que é moralmente problemático​​

Contudo, essa não é a réplica mais substancial ao argumento de Thomson. Ao analisar possíveis objeções a um argumento, a boa prática argumentativa exige sempre trazer as objeções mais consistentes possíveis. Isso é fundamental porque, na ética do debate, deve-se ter um compromisso com a verdade. Essa postura no debate também evita a criação de espantalhos, em que se refuta uma versão simplificada e distorcida do argumento contrário. Foi exatamente o que os autores fizeram: refutaram espantalhos.

Ora, a objeção mais consistente ao argumento do violinista foi formulada por Christopher Kaczor, em seu livro A ética do aborto. Não entrarei em detalhes; basta dizer que, em resumo, Kaczor argumenta que a analogia do violinista falha porque o aborto envolve matar diretamente o feto, enquanto desconectar-se do violinista permite que ele morra de causas naturais. A intenção e a ação no aborto são terminar a vida do feto. Isso é significativamente diferente de retirar suporte vital de uma pessoa em estado terminal. Há uma diferença moral entre evitar danos e causar danos. No aborto, a morte de uma pessoa é intencional, o que é moralmente problemático​​.

A pergunta correta para as entrevistas, a fim de evitar preconceitos e expor a efetiva experiência do aborto – nos termos da própria Judith Thomson – seria: É moralmente aceitável que Isabela contrate médicos para esquartejar o artista e jogar seus restos mortais no lixo? Posso apostar que Dias e Schwartsman ouviriam respostas bem diferentes.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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