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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Consequencialismo

Amar incondicionalmente o futuro da humanidade

Ativista do Just Stop Oil tenta interromper torneio de golpe no Reino Unido. (Foto: Peter Powell/EFE/EPA)

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O utilitarismo elevou os sentimentos de prazer e dor a parâmetros objetivos a fim de fundamentar a moralidade. Até aí, nada contra. Trata-se de um poderoso e bem difundido modelo teórico. Os consequencialistas, por definição, defendem a tese de que o que determina o valor da ação moral são as consequências – e não, por exemplo, a qualidade das intenções ou a disposição do caráter do agente moral.

Na ética consequencialista, valores como o bem, a integridade, a amizade e a compaixão ao próximo são reduzidos às expressões de sensação de dor ou prazer segundo uma ideia muito abrangente de felicidade. Nesse sentido, o que conhecemos como “Bem” se define por “qualquer coisa que desperte a máxima felicidade total”, uma das máximas adotadas pelos consequencialistas para nortear as ações humanas. O fundamento da vida ética é a capacidade de seres vivos agirem segundo interesses de minimizar sofrimento e maximizar bem-estar. É o futuro que está em jogo.

Não há nada mais perigoso do que pessoas que assumem para si a vanguarda de proteger o futuro da humanidade segundo o princípio utilitarista

Por ser uma avaliação quantificável e independente da qualidade da intenção ou do caráter do agente, uma ação deve ser considerada moral ou imoral em relação à essa capacidade de sentir e calcular consequências. Por isso, a vantagem desse modelo está na flexibilidade de poder ampliar as noções de ética ao reino animal e ao meio ambiente. Nada contra uma ética ambiental, não se trata disso. O problema é o fundamento utilitarista. O pai desta teoria, o filósofo britânico Jeremy Bentham, em Uma introdução aos princípios da moral e da legislação, define de forma lapidar o utilitarismo:

“Por princípio da utilidade entende-se aquele princípio que aprova ou desaprova qualquer ação, segundo a tendência que tem a aumentar ou a diminuir a felicidade da pessoa cujo interesse está em jogo, ou, o que é a mesma coisa em outros termos, segundo a tendência a promover ou a comprometer a referida felicidade. Digo qualquer ação, com o que tenciono dizer que isto vale não somente para qualquer ação de um indivíduo particular, mas também de qualquer ato ou medida de governo.”

Penso que o utilitarismo tem muitos empecilhos. O mais gritante é a dificuldade com o significado da experiência de felicidade sentida por um sádico na dor, por exemplo. A perversidade, que assinala no homem a disposição profunda para praticar o mal por praticar, impõe limites instransponíveis para o defensor desse tipo de ética. Afinal, o que significa “aumentar ou diminuir a felicidade da pessoa cujo interesse está em jogo”? Isso para não falar na ação de governos, como descrito por Bentham.

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A definição de felicidade segundo o princípio de utilidade abre muitas margens para interpretações subjetivas. Esse seria o preço de se rejeitar a racionalidade como critério mais robusto para a fundamentação ética. Claro que o problema não fica só no contraexemplo de um sádico agindo para a satisfação de sua perversa felicidade. Há pessoas que agem com a crença de que estão em busca de felicidade total para toda a humanidade. Não há nada mais perigoso do que pessoas que assumem para si a vanguarda de proteger o futuro da humanidade segundo o princípio utilitarista.

Pensem, por exemplo, nos ativistas do movimento Just Stop Oil. Trata-se de um movimento ambientalista que tem despertado a atenção pelas suas chamadas “ações diretas não violentas”. Já tentaram interromper partidas de futebol em diversos estádios do Reino Unido. Suas ações variaram desde invadir o campo até amarrar uma abraçadeira plástica na trave de um gol. Coisa aparentemente bobinha. Mas e aquelas manifestações em obras de arte? Foram os ativistas do Just Stop Oil que jogaram sopa de tomate no quadro Os Girassóis, de Van Gogh. A frase de efeito era eloquente: “O que vale mais: arte ou vida? Vocês estão mais preocupados com a proteção de uma pintura ou com a proteção do planeta e das pessoas?”

Veja que a “proteção do planeta e das pessoas” aqui é algo bastante genérico. Esses dias circulou no Twitter um vídeo de uma mãe desesperada para levar o filho ao hospital. No caso, os ativistas do Just Stop Oil interromperam o trânsito e não deixavam ninguém passar. Não sei o desfecho da história. Mas vi bem a cara de deboche dos ativistas preocupados com as condições do planeta. Afinal, o que vale mais, a vida do bebê e o desespero de uma mãe ou o futuro da humanidade? Deixarei a pergunta em aberto para próximas reflexões.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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