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Todo ano gosto de indicar para vocês, estimados leitores, uma retrospectiva das minhas melhores leituras. Na minha coluna da semana passada, eu fiz isso e espero que vocês tenham gostado. No entanto, como o ano ainda não acabou, gostaria de incluir mais alguns livros que precisam ser acrescentados a minha lista de recomendações. Hoje, mais do que indicar livros, gostaria de indicar o autor de uns livros: o filósofo Rémi Brague e algumas de suas obras.
Começarei pelo último livro que li este ano. Na verdade, terminei de ler o livro minutos antes de começar a escrever este texto e por isso pensei compartilhei como vocês um pouco da obra deste filósofo francês não muito discutido no Brasil. O livro que acabei de ler se chama Europa, a via romana e acabara de ser lançado pela recém-nascida Editora Mnēma. Se você não conhece Rémi Brague, um dos meus filósofos prediletos, esta é a obra a servir como “porta de entrada” para o seu percurso e preocupações intelectuais posteriores.
Rémi Brague escreveu um prefácio exclusivo para edição brasileira: “meu livro, desde sua primeira edição, concluía-se com uma questão que testemunhava certa angústia: nós ainda somos romanos? Desde então, despois de trinta anos de leituras e reflexões sobre a cultura europeia e sobre as instituições que reivindicam esse adjetivo, mas também à luz dos eventos ocorridos durante esse período, encontro-me encurralado entre duas impressões contrárias”.
Segundo ele, essas “impressões contrárias” seriam: primeiro, a consciência “da singularidade da cultura europeia, que se tornou há muito tempo ‘ocidental’, de sua diversidade, de sua riqueza, de seu interesse”; segundo, a dúvida a respeito dos sucessos da Europa: “corrói-me a dúvida diante de seu futuro possível ou provável”, confessa o autor, que se vê diante do que ainda é mais grave: “assistimos, dentro das próprias elites europeias, a um desenraizamento sempre crescente em relação às fontes antigas, tanto clássicas como bíblicas”.
Basicamente, a grande preocupação filosófica de Rémi Brague é com o “problema do homem” e suas fontes na cultura. Nada modesto, obviamente. Para Rémi Brague, ao longo da história, o ser humano foi se desviando dos paradigmas cosmológico ou teológico para orientação de sua vida. Não se trata exatamente de uma novidade na história da filosofia colocar o “homem” como um ponto central para a prática filosófica. O que é novidade aqui é como ele consegue atualizar este tema sem cair no desespero nostálgicos dos reacionários ou da recusa pretensiosa dos revolucionários.
Entre metafísica e epistemologia, ou seja, entre o Ser e o Conhecer, a pergunta pela “natureza humana” jamais deve ser colocada de lado ou esquecida. Antropologia filosófica é, portanto, uma disciplina central para qualquer um que se pretende aventurar na filosofia. Rémi Brague consegue organizar uma massa de informações a respeito do ser humano a partir de três grandes temas: a relação do homem com o mundo, a relação do homem com Deus e a relação do homem consigo mesmo.
No Brasil, há vários livros de Rémi Brague publicados, mas todos são desdobramentos deste pequeno livro publicando em 1992 — e que agora, graças a iniciativa do editor Marcelo Azevedo e do tradutor Jair Santos, ganha edição brasileira — a respeito da identidade cultural europeia, que também é uma parte fundamental da nossa identidade brasileira.
Nesse sentido, Europa, a via romana funciona mais como introdução à sua grande trilogia, que tem início com: A sabedoria do mundo. História de humana do universo; A lei de Deus: História filosófica de uma aliança; e, por fim, O reino do homem: gênese e fracasso do projeto moderno.
No Brasil, pela Edições Loyola, além de A Lei de Deus, já foram publicadas as obras mais especializadas em história da filosofia, como Introdução ao mundo grego: estudos de história de filosofia; O Tempo em Platão e Aristóteles; Mediante a Idade Média: filosofias medievais na cristandade, no Judaísmo e no Islã; e Âncoras no céu: A infraestrutura metafísica — particularmente um dos livros dele que eu mais gosto.
Em Âncoras do Céu, Remi Brague apresenta um panorama da história da metafísica começando, justamente, por uma reflexão a respeito da destruição moderna da metafísica, passando pela recusa niilista e o pessimismo até convidar o leitor a retornar aos clássicos, sobretudo a Platão. Como ele nos lembra, bem no espírito platônico: “aquilo que salva do naufrágio deve ser procurado no alto”.
Caríssimos, para lembrar uma frase de Santo Irineu (que aliás recuperei lendo Europa, a via romana), Cristo não trouxe nada de novo, mas trouxe tudo como novo. Sendo assim, que a nossa festa de Ano Novo, vivida como expectativa e também como memória, não se feche à noção de tempo cíclico, como processo ad infinitum, portanto cego, de construção e destruição, mas que se torne abertura ao tempo histórico como lugar do enraizamento de nossa liberdade e esperança. Enfim, não à toa, essa festa segue o Natal de Nosso Senhor: Um feliz 2021!