Eu não sou adepto da educação domiciliar, optei por colocar meus filhos na escola – instituição cuja função, dizem, é ensinar. E quando digo ensinar me refiro ao programa básico de formação escolar, com conteúdo curricular estruturado e comum para o sistema de ensino brasileiro. Mesmo sendo professor de ensino básico, não tenho competência, tempo e paciência para dirigir a formação escolar dos meus filhos. Acredito, pois, na escola como um espaço privilegiado para esse tipo de formação e, por isso, confio a educação deles a profissionais mais gabaritados do que eu. Mas e quem pensa o contrário? Também tenho uma dúvida.
Sinceramente, nunca vi um argumento sólido e definitivo contra a opção de famílias em dirigir e orientar a educação de seus próprios filhos. Do fato de eu não ter visto um argumento não significa que não existam muitos bons argumentos, apenas que o debate público é ruim mesmo. Sempre deve haver um especialista pronto para apresentar um argumento arrasador contra nossas experiências pessoais. Socialização? Dizem os especialistas: só um ambiente como a escola pode promover o desenvolvimento socioemocional de uma criança.
De um certo ponto de vista sociológico, família e escola se complementam. Se instituição família tem como finalidade promover a socialização primária de um indivíduo, por definição ela não poderia, ao mesmo tempo, assumir o papel que caberia à escola, cuja finalidade institucional é o de desenvolver aquele outro tipo de socialização, de abertura ao “público”, pois apresenta à consciência do indivíduo um mundo diferenciado daquele mundo de significação doméstica que só a família pode ser a referência. Entre pais e mães, há amigos, colegas e professores. São relações institucionais que distinguem e afirmam o nosso lugar no mundo.
Há vinte e dois anos trabalhando no ensino eu ouço professores lamentarem que a escola, como instituição social de socialização secundária, tem cumprido uma função que caberia às famílias, cuja competência é a socialização primária. O inverso também não poderia ser reclamado pelos pais? Deixo a pergunta em aberto e recomendo o famoso ensaio da Hannah Arendt escrito na década de 1950: Por que Joãozinho não sabe ler? Se a família não cumpre a função institucional de família e a escola não cumpre a função de escola, infere-se, com pesar e alerta, que a única instituição capaz de assumir a tutela e o controle de uma criança é o Estado. Essa visão de Estado é muito perigosa, pois desperta a imaginação de totalitários.
Mas nenhum defensor da educação domiciliar precisa fazer apelos estapafúrdios para reivindicar o direito de dirigir a educação dos próprios filhos. Na ordem correta das coisas, não se pode renunciar o papel limitado do Estado como guardião de uma causa muito nobre para a vida na república: a cidadania. Por melhor que seja a educação domiciliar, a família não resolve o problema da formação da cidadania ativa. Virtudes republicanas só nascem em referência ao bem comum da cidade, e para isso precisamos da referência ao outro não-familiar, para além da vida doméstica. E a função institucional da escola é criar a ponte entre família e cidade, entre consciência doméstica e bem comum.
Não tenho a menor dúvida de que, por princípio, famílias têm total liberdade e capacidade de dispender recursos pedagógicos necessários para ensinar o filho, Joãozinho, a finalmente ler – e ler bem. E não faz o menor sentido dizer que uma família não poderá dirigir o ensino de um filho com mais rigor e atenção do que os oferecidos em escolas. Há bons métodos e excelentes professores particulares disponíveis no mercado, e isso não jamais será o problema.
Os defensores do ensino domiciliar não negam as exigências pedagógicas e a submissão a testes determinados pelo poder competente. No PL 3179/2012, por exemplo, alegam, e concordo com eles, que “não há, porém, impedimento para que a mesma formação, se assegurada a sua qualidade e o devido acompanhamento pelo Poder Público certificador, seja oferecida no ambiente domiciliar, caso esta seja a opção da família do estudante”.
Minha única dúvida com o ensino domiciliar é a seguinte: só a vida doméstica, por mais amorosa e rigorosa que seja com relação aos estudos, tem a capacidade de formar um cidadão livre e participativo com consciência para o bem comum? Se não é a escola, onde isso poderá acontecer? Claro, aqui assumo um compromisso pessoal com o republicanismo – e não o liberalismo – como a melhor forma de tecer relações sociais sólidas contra as duas perigosas tiranias: a do indiferentismo individualista e a do totalitarismo do Estado. Eu sou um defensor da escola como um espaço privilegiado dessa experiência de vida em comunidade, e não vejo lugar que possa substituí-la.