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Infelizmente, devido a uma certa mentalidade arraigada entre nós, o senso comum tende a pensar que a reflexão filosófica está obsoleta. Para muitos, estudar filosofia em um mundo dominado pelo conhecimento científico e pelo apreço excessivo ao conforto material parece não fazer muito sentido. Nesse panorama, a prática filosófica é frequentemente vista como um mero capricho. No entanto, quem tem acompanhado esta coluna desde 2018 sabe o quanto me empenho em desconstruir essa percepção. Em um mundo onde a informação é acessível de maneira quase instantânea, é fácil para qualquer um se autoproclamar especialista em diversos assuntos, tornando-se um “sabe-tudo” sem qualquer profundida. Hoje, quero compartilhar com vocês, estimados leitores, um texto do renomado especialista em Filosofia Contemporânea: Mario Porta – que inclusive já nos deu uma entrevista aqui em ocasião do lançamento do seu novo livro sobre Kant.
Em seu artigo, Mario Porta reflete sobre a velocidade e a imediatez da informação e suas consequências, por vezes alarmantes, na cultura contemporânea: extremismo, fanatismo e erosão da racionalidade. Ele nos guia em uma reflexão sobre a evolução da filosofia na era da informação, ressaltando a essência da reflexividade e a historicidade da razão. Além disso, Porta discorre sobre a crescente desvalorização da história do pensamento, particularmente em relação a determinadas correntes filosóficas contemporâneas. Ao fim, ele destaca a importância de investigar as origens da filosofia moderna para entender as correntes predominantes de hoje, enfatizando a dicotomia entre o naturalismo e a filosofia transcendental no cenário filosófico do século 20.
Reflexões para uma história do pensamento contemporâneo
Uma das novidades inegáveis da nossa época é o aumento da quantidade de informação e da velocidade pela qual ela é transmitida. As consequências disto na cultura contemporânea são notáveis: ela é uma cultura do instante, da imediatez, da fugacidade, onde o opinar tem substituído o pensar. Frente ao estímulo da informação, a resposta imediata é a tomada de posição. Nesse horizonte, não é estranho que o extremismo e o fanatismo proliferem, manifestando-se na intolerância e na perda de racionalidade.
O filósofo atualmente é solicitado pela sociedade da informação como comentador de notícias. Se o filósofo medieval escrevia uma Suma, o formador de opinião atual tuíta
A filosofia sempre foi, historicamente, a consciência reflexiva da cultura e, consequentemente, a mais alta expressão da racionalidade própria de cada momento histórico. Porém, a situação acima descrita findou alcançando a própria filosofia; o filósofo atualmente é solicitado pela sociedade da informação como comentador de notícias. Se o filósofo medieval escrevia uma Suma, o formador de opinião atual tuíta.
A filosofia deve manter seu sentido e função dentro da cultura como momento reflexivo radical inerente à racionalidade. A história da filosofia foi em boa medida a história da construção da racionalidade humana, isto é, de uma racionalidade que tem como característica essencial a finitude. Nessa história podemos distinguir a construção de dois grandes modelos de racionalidade: um, que poderíamos chamar de racionalidade matemática, algorítmica ou inferencial, cujo pleno amadurecimento ocorre no século 17 (e no século 20 será conceitualizada em uma das suas formas como razão instrumental); outro, que poderíamos chamar de racionalidade hermenêutica, compreensiva ou reflexiva, cujo pleno amadurecimento ocorre no século 19. A diferença decisiva entre ambos os modelos é que, no primeiro caso, enquanto a razão parte de pretensas evidências ou fins não questionados para deles derivar consequências ou estabelecer os meios para alcançá-los, no segundo a razão realiza o movimento inverso para, a partir de um certo dado, e por um movimento reflexivo, remontar-se a seus pressupostos, explicitando estes e submetendo-os a um questionamento. Ora, a razão não reflexiva é sempre uma razão mutilada. A reflexividade, a tomada de consciência, o questionamento do ponto de partida, é momento essencial da racionalidade finita. É essa reflexividade que dá uma dimensão ética à nossa racionalidade, que nos faz, como seres racionais, algo mais que jogadores de xadrez.
O caráter reflexivo da razão está essencialmente vinculado à sua historicidade. A razão finita é não somente razão reflexiva, mas também razão essencialmente histórica. O movimento de reflexividade inerente à razão a vincula essencialmente à história do pensamento, pois, em última instancia, é essa história o último horizonte de toda reflexão. Reflexão, tomada de consciência do momento presente na sua plena significação, é sempre compreensão do presente a partir do passado. Por este motivo, pensamento realmente atual, efetivamente contemporâneo, é pensamento histórico, jamais instante presente. Na atividade intelectual do ser finito, o presente não é um estalo da eternidade; ele é histórico. O presente como absoluto instante é a eternidade.
Se a historicidade é momento essencial da racionalidade finita, existe uma tendência no mundo moderno de desvalorização da história do pensamento e, com ela, do legado cultural de gerações. Isto manifesta-se nas duas vertentes principais da filosofia contemporânea. Se o desprezo pela história do pensamento foi característico da filosofia analítica, o triunfo militar dos EUA na Segunda Guerra Mundial acarretou a perda da própria tradição daquele país que é o berço da hermenêutica, a Alemanha. A cultura do fast food tende a invadir a própria filosofia.
É sobre a base do diagnóstico anterior que a ideia de uma história do pensamento contemporâneo – a qual em princípio pode parecer absolutamente abstrata e descolada da realidade, eventualmente inclusive paradoxal – adquire total vigência e pleno sentido.
O pensamento contemporâneo está marcado pelas opções que foram estabelecidas no século 19 e é a sua prolongação e consequência. Como já o percebera Fichte e como o reafirmara meio século depois Husserl, a filosofia “contemporânea” tem duas opções, a saber, naturalismo e filosofia transcendental. Ora, durante quase todo o século 20 a filosofia esteve dominada pelo fenômeno do parting of the ways, ou seja, da existência de duas filosofias que não dialogavam entre si, a filosofia analítica anglo-saxônica e a filosofia fenomenológica continental. Entretanto, estas duas filosofias, a despeito de suas diferenças, foram formas refinadas de filosofia transcendental pós-idealista. Mas, se elas dominaram o panorama filosófico do século 20, as últimas décadas mostram uma tendência de deslocamento deste a favor do naturalismo, cujo fortalecimento acontece na mesma medida em que avança a ciência.
Por este motivo, e no horizonte das considerações feitas, o estudo das origens da filosofia contemporânea é um tema de plena atualidade para uma concepção de filosofia como consciência reflexiva da cultura, ou seja, para uma abordagem histórica do pensamento contemporâneo.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos