Quando penso em democracia penso no poder da discussão no interior do espaço público muito mais do que no poder encarnado pela unidade soberana do povo ou no poder dos indivíduos que buscam determinar livremente suas vidas segundo seus desejos. Claro que os indivíduos são livres para viver uma vida segundo os próprios desejos, só estou considerando o fato de que a democracia não significa nem o poder soberano do povo e nem o poder soberano do desejo dos indivíduos.
A democracia consiste, antes de tudo, em regime político fundamentado na capacidade argumentativa daqueles que participam ativamente dos assuntos da cidade. Tomar decisões, fazer correções normativas, validar e invalidar ideias mediante o debate público são a alma do processo democrático. Defender a democracia significa a defesa do espaço público como espaço de diálogo. A destruição desse espaço público, resultado da apatia individualista ou da mobilização coletivista, é tudo menos a defesa de valores democráticos.
Quem se dispõe a participar do debate democrático deve ser moralmente obrigado a acompanhar cada etapa do desenvolvimento de um raciocínio de quem oferece razões para suas demandas. Trata-se de uma corresponsabilidade entre os membros, um pacto de lealdade que reconhece no outro um valor inviolável. E vale considerar o fato de que há uma diferença substantiva entre o procedimento científico e o procedimento adotado em disputas políticas ou intelectuais a fim de que o ambiente democrático não se transforme em um regime político dos especialistas.
Não à toa os gregos distinguiram “silogismo”, enquanto método de demonstração científica, da “dialética”, que aqui deve ser compreendida como técnica de discussão em que há claramente uma disputa de opiniões. A diferença entre “demonstração científica” e o “embate entre opiniões” depende basicamente do estatuto das premissas e do quanto somos capazes de acompanhar as suas justificações. Enquanto a demonstração científica depende de proposições verdadeiras, na dialética as proposições partem de lugares comuns previamente aceitos para iniciar qualquer debate.
Em outras palavras, a comunidade política não é a mesma coisa que a comunidade científica. E preservar uma não significa minimizar ou desprezar a outra. Falar como especialista no espaço democrático não significa muita coisa politicamente, já que a correção da argumentação política é essencialmente distinta da correção das demonstrações científicas.
O animal político é o animal que fala, exige razões, oferece justificativas e toma decisões visando a manutenção do bem comum. Porém, na mesma proporção, é o animal que se põe à escuta, recebe justificativas e aceita — porque ajudou a tomar — certas decisões coletivas. Em um debate democrático, aceitar pressupostos não significa que eles sejam necessariamente verdadeiros. Trata-se, pois, de um acordo tácito onde o debate, a reflexão e a decisão possam se consolidar como consenso político, aberto politicamente à revisão democrática.
Considero que a democracia padeça de pelo menos três fraquezas. A primeira é de se tornar o regime político dos especialistas. A revisão dos pares se limitar à comunidade científica e não à comunidade política. Longe de mim menosprezar a ciência, o que estou dizendo é que a decisão democrática, em última instância, fundamenta-se em um tipo de inteligência política distinta da inteligência científica.
A segunda fraqueza é a do relativismo individualista. Quando diante da multiplicidade das opiniões, perde-se o critério do que seja realmente a Justiça. Enquanto governo de todos há na democracia o risco de se tornar o governo de ninguém, isto é, “o governo da desordem”, uma vez que o homem democrático é, para lembrar da crítica de Platão, “o homem da inconsequência e da imoralidade”.
Para Platão, talvez o maior crítico da democracia, que é injustamente acusado de totalitário, a democracia seria o governo de homens sem parâmetros e incapazes de conhecer o Bem, ou seja, a essência do “objeto da ciência mais elevada”, e, portanto, incapazes de reconhecer a “causa daquilo que existe de justo”. Resumindo: desde Platão, a ditadura do relativismo foi denunciada como uma ameaça que surge no interior da própria democracia, um problema que os Estados democráticos modernos buscaram corrigir com a ideia de Estado democrático de direito.
De qualquer forma, como definiu o filósofo canadense Charles Taylor, o relativismo é um risco no interior do espaço democrático. Taylor escreve: “o relativismo é em si uma ramificação de individualismo, cujo princípio é algo assim: todo mundo tem o direito de desenvolver a própria maneira de viver, fundamentada no próprio sentido do que é realmente importante ou de valor. As pessoas são convocadas a serem verdadeiras consigo mesmas e a buscar a própria autorrealização. Em que isso consiste, cada um deve, em última instância, determinar por si mesmo”.
Por outro lado, a terceira fraqueza à ordem democrática é a democracia se tornar ditadura da maioria. E aqui vale recorrer novamente aos antigos gregos com o importante episódio do julgamento, condenação e morte de Sócrates. Sócrates foi certamente uma das primeiras figuras ilustres da história a ser julgado e condenado à morte democraticamente. O “homem melhor e, além disso, o mais sábio e o mais justo dos homens” de Atenas fora executado em nome dos interesses democráticos da cidade.
O sociólogo Michael Mann escreveu em seu The Dark Side of Democracy: na ideia de “soberania coletiva” há justamente o risco de autodeterminação de um “todo orgânico” à custa da vida do “outro” que, ao se diferenciar do “todo”, torna-se o inimigo de um ideal de soberania cujo fundamento último é a vontade geral do povo. A fraqueza aqui já não é mais a da apatia gerada pelo relativismo individualista, da desordem anárquica e do solipsismo moral. Pelo contrário, o poder da autodeterminação “coletiva” se torna infalível na medida em que o povo é cultuado como um deus para si mesmo.