Recentemente li o livro de Mark Lilla, O progressista de ontem e o do amanhã: Desafios da democracia liberal no mundo pós-políticas identitárias. Estou para ler crítica tão incisiva e esclarecedora a respeito das chamadas políticas identitárias – hoje, sem dúvida, a maior ameaça à cultura democrática.
Eu havia lido outros bons livros do Mark Lilla, que sempre recomendo: A mente imprudente, sobre os intelectuais na atividade política, e A mente naufragada, um excelente livro sobre o espírito reacionário. Nesses dois livros, Lilla analisa pensadores que vão de Carl Schmitt, Walter Benjamin, Alexandre Kojève, Michel Foucault e Jacques Derrida a Franz Rosenzweig, Eric Voegelin e Leo Strauss. Entre mente imprudente e mente naufragada, onde devemos ficar?
No epílogo de A mente imprudente, Lilla apresenta um conceito muito interessante para descrever a relação do intelectual com o poder político: a sedução de Siracusa. O termo se refere a Platão e a cidade de Siracusa, uma antiga cidade da Sicília. Foi lá que Platão teria tentado instituir um governo de “reis filósofos”. Obviamente, não deu certo.
Não há mais “cidadãos” se mobilizando a partir de uma agenda igualitária e republicana da participação, há grupos de “meras afinidades eletivas”
Segundo Lilla, “o fascínio de Siracusa é forte para qualquer homem ou mulher pensante, e assim deveria ser mesmo”, pois “Platão viu há muito tempo que existe alguma ligação na mente humana entre o anseio pela verdade e o desejo de contribuir para o ‘correto ordenamento das cidades e dos lares’”. Quem nunca idealizou um mundo à sua própria imagem e semelhança que a atire a primeira pedra.
No entanto, Platão mantinha-se atento a esse impulso como um “potencial destrutivo” e, por isso, se preocupou em canalizá-lo para “uma vida intelectual e política saudável”. Como? Só lendo Platão para descobrir o quanto a política pode ser melancólica. Ora, nunca escapou de Platão a plena consciência desse problema que sempre desafiou os intelectuais e filósofos. Há na tentação do poder um elemento de tragicidade incontornável.
Voltando ao Progressista de ontem e o de amanhã, Lilla diz que há um “modelo Facebook” de conceber a identidade e a política. Trata-se do problema de como o ser humano sente participar de sua comunidade por vínculos de afeto. O modelo “redes sociais” de se fazer política é “difuso” por criar perfil (nossa identidade pública) a partir de “redes de afeto” – um termo muito mais preciso do que o usual “bolha”, que de alguma forma serve para descrever a atividade acrítica e puramente reativa dos engajamentos políticos nas redes.
Há um problema fundamental nessa nova forma de criar comunidade política: As redes de afeto superaram a forma legítima e tradicional de fazer política baseada na “cidadania”. Não há mais “cidadãos” se mobilizando a partir de uma agenda igualitária e republicana da participação, há grupos de “meras afinidades eletivas”. Escreve Lilla:
“O modelo Facebook é inteiramente centrado no eu, no meu próprio eu, não nas histórias comuns ou no bem comum [...]. Jovens de esquerda – em contraste com os de direita – hoje têm menos probabilidade de vincular seus engajamentos a um conjunto de ideias políticas. É muito mais provável que se declarem Xs que se engajam na política, Xs que se preocupam com a situação dos outros X e com as questões que afetam a X-idade”.
É a política pelo círculo de afetos sem qualquer dimensão objetiva e racional. Não há o valor na experiência ética de um outro, há a comunidade política formada pela minha identidade que sofre. A política da cidadania republicana foi substituída pelo lamento ressentido da comunidade afetiva. De direita à esquerda, o impulso destrutivo do pathos revolucionário-identitário foi colocado em primeiro plano no que diz respeito ao engajamento político.
A radicalidade da política dos afetos não leva a nenhum lugar exceto à violência
Segundo Lilla, “uma locução nova e muito reveladora migrou das nossas universidades para a mídia convencional: 'Falando como X'... não se trata de uma frase inofensiva. Ela diz ao ouvinte que estou falando de uma posição privilegiada neste assunto”. Só que esse nova forma nada inofensiva de afetividade “ergue uma barreira contra perguntas, que, por definição, vêm da perspectiva de um X. E o encontro se converte numa relação de poder: o vitorioso na discussão será aquele que invocar a identidade moralmente superior e expressar mais indignação com as perguntas que lhe forem feitas”.
Não há mais argumento. Pensar não é mais argumentar a favor de um conjunto de ideias e crenças. Agora a forma de discussão pública é “Falando como X, estou ofendido por você afirmar B”. Para Mark Lilla, “isso faz todo sentido quando se acredita que a identidade determina tudo. Significa que não existe espaço imparcial para o diálogo. Homens brancos têm uma 'epistemologia', mulheres negras têm outra...”
Se é assim, ele pergunta, então o que resta dizer? Nada. Da minha parte, penso que a radicalidade da política dos afetos não leva a nenhum lugar exceto à violência. A lógica da comunidade identitária, expressa no mecanismo do “lugar de fala”, só poderia ser lugar da guerra de todos os grupos identitários contra todos. Portanto, não é política, mas guerra dos afetos.
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