Existem pessoas que não toleram receber críticas. Nesse caso, ainda adotam um dos mecanismos mais imediatos e eficientes para se proteger dos críticos: atacar não a crítica em si, mas o caráter do crítico, a reputação da pessoa que critica. Quanto mais implacável e mentiroso for o ataque, mais bem-sucedida será a defesa.
Vale dizer que o ataque só ganha legitimidade se você conseguir propagar a narrativa de que o crítico é o algoz perigoso, o perseguidor implacável, alguém que não é digno de confiança pública: “você já parou de bater na tua mulher?” – insinua com perversidade aquele que precisa se esquivar dos argumentos críticos.
Simples: se você não tem como atacar argumentos, ataque quem argumenta. Para ser mais eficiente ainda, crie a narrativa de que você está sendo perseguido por esse monstro, um obstáculo terrível, único responsável por não permitir seu sucesso. Ou seja: se não fosse o complô dos críticos, você conseguiria realizar o que sempre prometeu e almejou.
É assim que os autoritários absorvem as narrativas: minando, consistentemente, o caráter moral do crítico
Como explicam os manuais de falácia, “embora um insulto não seja em si mesmo falacioso, ele será quando perpetrado de modo calculado com o objetivo de solapar o argumento de um oponente e encorajar a audiência a lhe conferir menos valor que merece”, diz Madsen Pirie, autor do excelente Como vencer todas as argumentações, já citado aqui. Em resumo, um argumento bom jamais poderia ser formulado por um canalha.
É assim que os autoritários absorvem as narrativas: minando, consistentemente, o caráter moral do crítico, tentando destruir a reputação diante de uma audiência ávida por justiça e vingança. Por isso, faça-se de vítima perseguida. Desperte o sentimento de solidariedade da audiência apoiadora.
Pois bem, aqueles que defendem os recentes xingamentos de Bolsonaro a uma jornalista partem deste princípio: Bolsonaro é vítima de uma trama criada pela imprensa esquerdista para destruir o país, que ele, o presidente, e só ele, poderia salvar. O PT renasce das cinzas. O que será do país se Lula voltar ao poder?
Independentemente das eleições de 2022 e da ameaça petista, a imprensa tem toda a liberdade para xingar, criticar e até acusar Bolsonaro de fascista e genocida. A imprensa deve gozar de pleno direito de liberdade de expressão, de crítica e de oposição. Enfim, de bravata retórica. E todo o combate à imprensa deverá vir da própria sociedade civil, da própria imprensa.
Bolsonaro, ao contrário, na qualidade de presidente da República, não pode atacar jornalistas por fazerem perguntas – goste ele ou não das perguntas, sejam essas perguntas ruins, impertinentes ou constrangedoras.
Cá entre nós, caro leitor, se o presidente não aguenta pressão de um jornalismo mais crítico, que mude de profissão. Ninguém é obrigado a ser presidente. Uma vez eleito, todo presidente, inclusive Bolsonaro, deve se submeter a liturgias e exigências cívicas do cargo. Bolsonaro já não é mais uma pessoa física, um CPF, ele é chefe do Poder Executivo, o mais alto cargo político numa república presidencialista. Seu poder é, sim, limitado por instituições republicanas democráticas. Mais do que isso, suas ações podem ser questionadas por qualquer cidadão.
Se o presidente não aguenta pressão de um jornalismo mais crítico, que mude de profissão
Por isso, uma das exigências republicanas consiste na capacidade de aguentar pressão de jornalistas críticos. Não seria esta capacidade de um bom governante: a virtù? A virtù significa uma série de qualidades que permite ao governante aliar-se às forças da contingências e, para lembrar de Maquiavel, saber conquistar a honra, a glória e fama contra as forças da fortuna.
A história política sinalizou que há duas maneiras de fazer o mal, já ensinava Cícero: pela força ou pela fraude. As duas, argumenta o filósofo romano, são bestiais e indignas do homem. Bolsonaro e Lula se harmonizam, neste quesito, em suas desumanidades: a boçalidade bélica de um compensa a lábia venenosa do outro – e vice-versa. É exatamente assim que Bolsonaro e bolsonaristas, Lula e petistas, enfim, é assim que toda corja autoritária atua para convencer os adeptos: negar a possibilidade de interlocução numa disputa política e propagar a percepção de que o algoz é, na verdade, a vítima.