Há um tipo de ateu que diz não acreditar em Deus por falta de evidências. Ele responde dizendo em alto e bom tom: “não há evidências, logo Deus não existe”. O filósofo e matemático W.K. Clifford apresentou a fórmula mais robusta desse tipo de ateísmo em seu livro A Ética da Crença: “é sempre errado, em todo lugar e para qualquer um, acreditar em alguma coisa com base em provas insuficientes (crer sem evidências suficientes)”. Atribuiu, portanto, sentido moral para o fato de pessoas acreditarem quando carece evidências: crentes em Deus são imorais.
A pergunta move montanhas: será que é sempre errado acreditar quando não temos evidências? Se fosse assim, por consequência lógica e coerência moral, pode-se concluir que esse tipo de ateísmo jamais aceitaria manter qualquer relação de amizade com alguém. Afinal, ele deve aceitar sua incapacidade de evidenciar a experiência de amizade por alguém ou evidenciar a experiência de amizade de alguém por ele. Pensando assim, seria imoral estabelecer vínculos de amizade.
A beleza da amizade não está justamente na experiência de fidelidade? Ou seja: na adesão voluntária de continuar acreditando mesmo quando não há nada além da “palavra declarada” de um amigo e de um certo comportamento que resulta dessa adesão?
Atenção: meu objetivo não é provar a existência de Deus. Até porque considero essa pergunta “Deus existe?” uma das mais vagas perguntas da humanidade. Filosoficamente, antes de falar de Deus, precisaríamos refletir sobre o termo “existir”. Se tem algo que não é óbvio em filosofia é o valor de conhecimento do termo “existir”. Assim, minha pergunta está muito mais relacionada à natureza da fé. Eu posso acreditar mesmo sem evidências? Defendo que sim. E defendo que o argumento “não há evidências, logo Deus não existe” é um dos mais bobinhos.
Quando alguém diz “somos amigos”, a expressão não traz a evidência explícita de sua veracidade. O fundamento desse tipo expressão consiste no ato de confiança, da abertura subjetiva e afetiva de uma pessoa para com a outra. Vínculos de amizade têm como fundamento a adesão voluntária que envolve o todo da vida pessoal. Discursos de amizade e discursos religiosos partilham, pelo menos nesse ponto, dos mesmos Dilemas humanos: tomamos consciência de que não somos seres autossuficientes e, por isso, dependemos uns dos outros.
A experiência de amizade é das mais concretas e excepcionais experiências humanas. A expressão “somos amigos”, por exemplo, não tem outra referência a não ser a experiência imediata interna de quem declara ser amigo de outra pessoa. Quem acredita em Deus não acredita “numa coisa aí”, mas acredita em Alguém e deseja com ele estreitar vínculos de “amizade” — na linguagem religiosa, estabelecer “aliança” com Deus. E espera ser correspondido. A pergunta mais importante da experiência religiosa seria esta: em Quem nós acreditamos quando declaramos acreditar?
Dizer “em Deus” significa o seguinte: “nós, membros dessa comunidade de crentes, acreditamos, ou seja, depositamos nossa confiança em Deus (nome próprio). E, por isso, renunciamos a todas as outras entidades que buscam se colocar no lugar desse ser absoluto e soberano”. Deus não é uma entidade contingente entre outras, mas como diz Santo Tomas de Aquino: Deus é o ser subsistente por si mesmo (Deus est ipsum esse per se subsistens). Qualquer entidade que se coloca no lugar de Deus é “idolatria”. Que significa pegar uma parte da realidade e cultuá-la como se fosse uma divindade. Os piores cultos resultam daquelas pessoas que cultuam a si mesmas, a nação ou o Estado.
No discurso religioso, não há como comprovar ou verificar sua veracidade por algum tipo de experiência pública direta exceto pelo comportamento da comunidade daqueles que creem. “Provas de amor” são todas pragmáticas e por isso só podem ser verificadas pela experiência de conduta e mudanças de hábitos motivados por crenças — não há garantias de veracidade lógica ou científica na expressão “considero você meu amigo”. Mas ao considerar alguém como amigo, isto é, ao depositar confiança na amizade de alguém, eu espero me comportar como amigo e espero de você comportamento recíproco.
Qualquer grau de incertezas que surge nesse tipo de relação no fundo manifesta o grau de incertezas inerente à vida humana.
Ademais, ser ateu não tem nada a ver com "exigências teóricas", antes tem muito mais a ver com a recusa deliberada e existencial da ordem transcendente, infinita, que fundamenta a nossa finitude. O ateísmo robusto e sincero só pode se dar na tomada de consciência e recusa de não aceitar Deus. Ateu nenhum conseguiu demonstrar que Deus não existe. E o ateu maduro, que leva com seriedade os dramas de sua existência, sabe disso e mesmo assim diz “não espero nada de Deus, recuso acreditar nele”.
A tomada de consciência que nos permite afirmar ou negar Deus determina a concepção que teremos de nós mesmos. Quem diz acreditar em Deus mesmo sem “evidências” científicas é porque reconhece, antes de tudo, seu status de criatura, reconhecer a si como um ser que dependente do Amor misericordioso de Deus para existir como criatura e como pessoa. Quem se recusa acreditar em Deus, pelo contrário, é porque recusa a se ver como criatura. Portanto, vê a si mesmo como um ser autossuficiente. Nesses termos, o ateísmo mais sério diz respeito a uma revolta de natureza metafísica: a revolta contra o fato irrecusável de sermos mortais, patéticos e finitos.
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