Nesta semana, o humorista Fábio Porchat lançou uma campanha de combate ao racismo com a seguinte mensagem: SOU UM RACISTA EM DESCONSTRUÇÃO – assim mesmo, tudo em maiúsculas, para todo mundo ver e aplaudir. O movimento cativou famosos, que já correram em seus perfis nas redes sociais para participar do rito secular de autoimolação e, claro, autopromoção.
O marketing do vitimismo é generoso. Para quem deseja se tornar maior e não moralmente melhor, não há caminho mais louvável do que confessar culpa pública perante o Tribunal da Santa Internet no ritual do auto da nova fé. E não importa se o racismo é crime tipificado, segundo a Constituição, como inafiançável. O importante, nesse caso, será o imediato resultado das curtidas e do gerador de polêmica – esse pão nosso de cada dia.
A foto postada por Porchat veio acompanhada da fórmula sacramental do rito da contrição pública:
É essencial e urgente que eu diga isso antes que mais vidas sejam prejudicadas.
Carrego em mim preconceitos estruturais e estou aqui pra dizer que participei dessa construção nociva, e de forma perigosamente sutil, absorvi e reproduzi o idioma do racismo com fluência. Não sei quantas vezes eu fui tóxico ao longo da vida, mas a partir de agora EU SOU UM RACISTA EM DESCONSTRUÇÃO e começo o trabalho de transformação.
Para quem deseja se tornar maior e não moralmente melhor, não há caminho mais louvável do que confessar culpa pública perante o Tribunal da Santa Internet
Há toda uma liturgia secular impregnada no texto e ela está expressa em três movimentos:
O primeiro movimento litúrgico consiste em sinalizar o estado substancial de urgência para que outras vidas não sejam mais prejudicadas. Divide-se o tempo em duas grandes dimensões cósmicas: o antes e o depois do anúncio da culpa. São os ritos iniciais de acolhida, com uma antífona de entrada. A preparação para o Kyrie Eleison.
Deve-se registrar o caráter abstrato e difuso do que está em jogo: “antes que mais vidas sejam prejudicas”. Não adianta perguntar exatamente quais pessoas Porchat ajudou a prejudicar, porque isso implicaria perguntar pelas pessoas de carne e osso a quem ele teria de olhar nos olhos para pedir desculpas. Para a religião secular, o uso de categorias abstratas tem um efeito catártico.
Apropriando-se de alguns símbolos da fé pós-moderna na justiça social, o segundo movimento litúrgico é a confissão do pecado secular. Aqui há toda uma gramática: “carrego em mim preconceitos estruturais”; “participei dessa construção nociva”; “absorvi e reproduzi o idioma do racismo com fluência”; “não sei quantas vezes eu fui tóxico ao longo da vida” (destaques são meus). Funciona literalmente como uma ladainha, que substitui as súplicas de rito cristão.
Como diz a Enciclopédia Católica, ladainha é a forma conhecida e muito apreciada de “petição responsiva” usada em serviços litúrgicos públicos e devoções privadas, por necessidades comuns da Igreja. No caso da era da desconstrução, não se implora ajuda a Deus para apaziguar sua ira contra os pecadores. Se na pós-modernidade Deus está morto, não está morto o desejo humano por misericórdia. Porchat apela para a divina sociedade apaziguar sua ira. Para lembrar do título do livro do Anatole France sobre o terror revolucionário: os deuses têm sede.
O terceiro movimento do ato litúrgico da era secular é o da autorredenção. Não se trata de pedir desculpas a uma pessoa específica ou a Deus simplesmente porque, além de essa pessoa não existir na consciência dele, ninguém mais pode redimir o pecado a não ser o próprio declarante público do pecado.
Escrever em maiúsculas “EU SOU UM RACISTA EM DESCONSTRUÇÃO” já é mais do que o suficiente para resolver diante de si o problema da culpa social – e, claro, ganhar umas curtidas, ganhar ainda mais apoio dos fãs... O deus da demagogia não falha.
Porchat se faz de algoz para se fazer ao mesmo tempo de vítima e juiz da própria causa
No Tribunal da Santa Internet, não há necessidade de compreender que o pecado original (o da tradição teológica cristã) se refere a uma deformação da própria natureza humana e, por isso, nenhum de nós seria capaz de redimir quem quer que seja; só Deus. Mas Deus, em pleno século 21? Ora, que coisa mais fundamentalista!
O fato é que a suposta humildade pelo reconhecimento e pelo pedido de desculpas públicas mascara a arrogância fatal desse tipo de gesto. Porchat se faz de algoz para se fazer ao mesmo tempo de vítima e juiz da própria causa.
Ele confessa racismo, mas na mesma linha exime a si próprio da responsabilidade de ser racista, pois a responsabilidade está na velha “sociedade” (lembra da abstração?). Quando ele diz que carrega “preconceitos estruturais” e que absorveu e reproduziu “o idioma do racismo com fluência”, significa que o problema do racismo nele nunca foi exatamente dele, mas da sociedade de que ele “participa e constrói”.
Como uma espécie de pecado original, ele recebeu e transmitiu o racismo de uma estrutura histórica e socialmente dada. Sem qualquer necessidade de penitência, a bênção final só serve para lembrar que o inferno são sempre os outros.