Com a Páscoa, o Natal é a mais cristã das celebrações. Do ponto de vista da fé, são datas exigentes. A Páscoa cristã exige nada mais nada menos do que a fé na ressurreição: Depois de descer à mansão dos mortos, ressuscitar ao terceiro dia, Jesus está sentado à direita de Deus Pai. O Natal não é menos absurdo: o pequeno Jesus — nosso Senhor concebido do Espírito Santo — nasceu da Virgem Maria. Entre o horror da cruz e a humildade da manjedoura, a humilhação de Deus é para a glória do homem: na comunhão dos santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne e, por fim, na vida eterna.
Neste Natal — em todo Natal, na verdade — um parente ateu engraçadinho me provoca: você realmente acredita nessas coisas? Respondo na maior tranquilidade: sim, acredito. É um “sim” metafísico, e eu sou ciente de tudo o que está em jogo na resposta. O “não” do ateu também não colocaria uma série de coisas em jogo? — devolvo a pergunta, com igual provocação. Se fosse a minha avó, mandá-lo-ia à merda. Assim, com estilo. Por outro lado, meu ceticismo me condena. Por muito tempo, deparei-me com os paradoxos da fé e da falta de fé. Absurdos para uns, escândalos para outros, encaro a discussão. No núcleo de tudo isso, está o desespero, a busca pelo sentido, o sofrimento e a morte: O horror, o horror, o horror… o coração das trevas (para lembrar do Conrad).
Penso no ateísmo como concepção completa de mundo. Trata-se de posicionamento filosófico tão radical e antagônico quanto à do mais pio do religioso. Já fui ateu, sei como é acreditar na minha inteligência, na minha liberdade e no meu senso de dever. Ou não há compromissos existenciais com o fundamento último da realidade? Há crenças profundas e consequentes no ateísmo. Nem todo ateu é um vlogueiro mimado. A afirmação ou a negação de Deus são faces de uma mesma moeda. Se nego a existência de Deus, é porque afirmo algum tipo de crença na existência de outra realidade tão definitiva quanto o Todo-Poderoso criador do céu e da terra: Natureza, Matéria, Cosmos, Progresso, Estado, Humanidade, Psicólogos ou Rivotril.
O instinto de verdades últimas é permanente no homem. Um anseio vital nos arrasta constantemente para o vazio da incompreensão. Embora a maioria só lembre dessas coisas na doença ou na morte — e talvez tudo não passe de um mero conforto psíquico —, o fato é que, como diz o poeta Baudelaire, Deus é o único ser que, para reinar, não precisa nem sequer existir. Estou com ele. Se Deus não reina, qualquer outra coisa boba reina no lugar — acho que já escrevi isso semana passada, enfim. Ser todo-poderoso e reinar do céu anula o monopólio do poder dos homens, banaliza seus caprichos, iguala os poderosos aos miseráveis e os distintos aos insignificantes. Na Glória de Deus todos são iguais na miséria.
Entretanto, há ateus e não vou generalizar. Há um primo ateu me provocando. Ele traz a boa nova da libertação. É quase um ateu evangélico. Tento explicar; ele aceita. Se fosse minha avó, mandá-lo-ia à merda…
O ateísmo evangélico é a versão ativista do ateísmo. Trata-se de postura hostil com praticamente todas as formas de vida religiosa. O ateu ativista milita para o fim das religiões. Na prática, ou seja, na farta ceia de Natal, debocha do presépio. A lógica, de simplicidade constrangedora, pode ser resumida assim: a religião é a fonte do mal e atraso no mundo; elimina-se a religião, logo será possível progredir para um mundo de paz e abundância. Meu primo não tem coragem de me falar essas coisas na minha cara, porém eu sei exatamente o que ele pensa. E por isso, devolvo.
Não há discussão com quem não se coloca a si mesmo como problema. A fraqueza do ateu evangélico é nunca duvidar de si mesmo. O fracasso de toda postura intelectual não é outro senão o de se esquivar dos seus próprios alicerces. Eis o ateísmo das ovelhas: o verdadeiro triunfo da ignorância e a crença cega na ciência. Um ateu como Nietzsche poderia ser um bom começo para todo evangélico tomar consciência do buraco em que se meteu.
Minha bronca mesmo é com o ateu humanista, do qual o ateísmo evangélico não passa de caricatura grotesca. O humanismo é herdeiro dos Iluministas ou modernos. “A essência da tradição intelectual radical”, diz o historiador Jonathan Israel, “é a rejeição filosófica da religião revelada, dos milagres e da Providência, substituindo a ideia de salvação após a morte com um bem maior aqui e agora. Nessa tradição, a felicidade humana é vista em parte como individualismo possessivo, mas em parte como sociabilidade compartilhada que coloca o bem maior nas leis criadas pela sociedade para permitir o maior grau de ‘liberdade’ a cada indivíduo”.
Essa concepção deriva da crença inequívoca de que as ciências experimentais são paradigmas de conhecimento seguro e bem-sucedido. O progresso é o motor da história e a realização efetiva de um mundo melhor é uma meta a ser alcançada inevitavelmente. Em suma, os ateus humanistas não são meros críticos da religião revelada e histórica e muito menos fatalistas pessimistas. Pelo contrário, têm posturas bastante objetivas, uma agenda ética e um programa político amplo de engenharia moral e social.
De qualquer maneira, meu maior desafio pessoal é com o niilismo. Acredito em Deus por causa do nada metafísico.
Ateísmo niilista é a forma mais séria de ateísmo. E a experiência que coloca em xeque toda possibilidade de deduzir algum sentido da vida. A vida não tem sentido, e qualquer busca de sentido não passa de uma vã pretensão provinciana de seres humanos. Concepção bastante fatalista, e certamente a mais realista. “Seu resultado último”, vai dizer o filósofo francês Rémi Brague, “é a convicção de que a existência é insustentável, unida à intuição de que não temos nenhum direito de nem sequer considerar o além das coisas que poderia redimi-las” (Já assistiram à primeira temporada da série True Detective?)
Todo niilista, ou ateu consequente, considera a natureza humana insuficiente para fundamentar qualquer tipo de sentido, qualquer valor. Há uma disfunção cognitiva no homem e no mundo. Uma miséria existencial e a profunda experiência de absurdidade da vida. O ateu niilista experimenta o fato de que participamos de um drama cósmico sem nenhuma solução possível. Tudo é nada. O universo é fruto do acaso e o acaso rege cada detalhe da nossa medíocre tentativa de produzir alguma coisa que tenha significado. É a desvalorização de todos os valores.
Enfim, entre o credo niilista e o credo cristão, façamos uma aposta e, independentemente do resultado, saber ter a nobreza de voltarmos às nossas banalidades natalinas.
Desejo um Feliz Natal do Senhor e um ótimo ano novo a todos!