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Não tenho dúvidas a respeito das inúmeras e boas razões para as pessoas desejarem pôr fim à própria vida. Viver é sofrer. E muitas vezes a existência não passa de um verdadeiro absurdo. Deve haver algum significado nisso tudo. Os momentos de alegria são tão fugazes. Longe de mim pretender julgar o coração suicida. Se alguém pensando em se matar me pedisse uma única razão para continuar vivo, juro que não saberia o que responder. Deus me livre dessa tarefa. Cada um carrega o peso amargo da própria sorte. Já tive meus momentos de desolação. Sei bem como é a experiência desse sentimento trágico. Meu herói intelectual foi Álvares de Campos, o decadente heterônimo de Fernando Pessoa. Lisbon Revisited (1923) era o meu poema de cabeceira:

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Não. Não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Mesmo que eu dissimule e tente encontrar nobres propósitos sobre a finalidade da filosofia — e da vida —, continuo um devoto do que o filósofo Albert Camus escreveu no início do seu ensaio O Mito de Sísifo: “Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, aparece em seguida. São jogos. É preciso, antes de tudo, responder”. Não é nada fácil responder, sobretudo para uma pessoa que já não tem mais perspectivas na vida. A filosofia tem limites e esse é um deles. A velhice, a solidão e a invalidez suprimem ainda mais toda textura da existência. Ninguém tem o direito de dizer para outra pessoa como carregar o próprio fardo, mas o suicida não pode exigir auxílio dos outros.

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Por isso, acho até compreensível que o cientista australiano David Goodall, aos 104 anos, decida pôr fim à sua vida. Afinal, o que esperar da vida aos 104 anos de idade? Se com 20 eu tinha dúvidas. E como ele diz: “Não sou feliz. Eu quero morrer”. Agora, o que não se pode aceitar é a justificativa para que o Estado forneça assistência ao seu desejo: “Não é particularmente triste. O que é triste é se alguém é impedido”. Continua, “meu sentimento é que uma pessoa velha como eu deve ter plenos direitos de cidadania, incluindo o direito ao suicídio assistido”. Penso haver uma perversidade escondida aqui. A ideia de “direito ao suicídio assistido” revela um compromisso com o absurdo. Não se pode corroborar com o fato de que a vida não tem sentido, por mais que não tenha. É uma aposta.

Para me explicar, recorro ao belíssimo filme Perfume de Mulher, com Al Pacino (Oscar de melhor ator) no inesquecível papel do tenente-coronel Frank Slade. Perfume de mulher não é um filme sobre a performance de Al Pacino dançando tango. Na verdade, trata-se exatamente de tentar responder à questão de Camus com honestidade. Velho, cego e infeliz, Frank Slade tomou consciência de que a vida não vale mais a pena ser vivida. Viver é puro peso para ele e para os outros. As alegrias se esgotaram. O que fazer? Depois de uma vida de altos e baixos, nada como contratar a ajuda de um jovem inocente para servir de guia numa “jornada espiritual” para a morte. Nesse caso, Slade não quer assistência para morrer. Por ser cego, quer assistência para saborear os últimos prazeres da vida. Quem não tem esse direito?

O estudante Charles Simmes, contratado por Slade, também está cheio de problemas e vive um conflito moral dos mais pesados — pelo menos para um jovem promissor e bolsista de uma grande escola: delatar uns amigos e se dar bem na vida ou não delatar os amigos e se ferrar para sempre? Ser utilitarista e pensar no futuro ou dane-se o futuro, pois o que importa é agir segundo os deveres de consciência? No filme, esse dilema é construído com grande força poética a partir de uma banalidade qualquer na vida de um estudante do ensino médio.

Antes de resolver seus conflitos morais, Charles Simms será testado de outra maneira por Frank Slade. O tenente-coronel quer meter uma bala nos próprios miolos, mas primeiro irá usufruir de tudo o que a vida pode oferecer de melhor e mais prazeroso para quem chegou no topo da existência: comer no melhor restaurante, se hospedar no melhor hotel, fazer a barba no melhor barbeiro, dormir com uma prostituta de luxo, dançar tango com uma mulher de beleza estonteante, pilotar nada mais nada menos do que um Ferrari… Enfim, depois de gozar dos prazeres, que tipo de dignidade sobrará para um velho decadente e inválido?

Como Slade diz para Charles Simms — o incorruptível jovem responsável por assisti-lo nessa jornada — “a consciência morreu”. Portanto, para quem já vive mergulhado na escuridão, só restará a pergunta retórica: “me dê uma única razão para continuar vivo”? A pedra de Sísifo retorna ao seu lugar de origem. Charles se recusa a ajudá-lo, pois ele sabe que se permitir que Frank tire a própria vida, é a própria vida de Charles que estará em jogo. Não irá corroborar com isso. Não pode corroborar com isso. Charles enfrenta o tenente-coronel com coragem e conduz toda narrativa a um grande impasse: “você só vai se matar se me matar primeiro”. Frank, com a arma apontada para cabeça de Charles, rebate: “mas você não quer se matar”. Ele não quer, de fato. Mas e daí?

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E daí que se todos estamos no mesmo barco, por que não levar o raciocínio suicida às últimas consequências? Ser conivente com o suicídio, prestar-lhe “assistência”, seja de que natureza for, é ser conivente com o fato de que nenhuma vida vale a pena ser vivida em nenhuma circunstância exceto enquanto usufruímos dos prazeres da vida. Ou seja, uma vida escrava de prazeres e fadada ao imperativo da morte. Nem a minha, nem a sua e nem a de ninguém têm valor. No fundo, é só isso o que sobra: prazer ou escuridão. Uma patética existência fechada em si mesmo e sempre fadada ao fracasso. A lógica de todo suicídio assistido é exatamente a seguinte: morrer é um bem, viver um mal — e por favor sejam coniventes com isso.