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No dia 23 de dezembro, a jornalista Amanda Audi, antecipadamente, nos presenteou com uma pérola — talvez fanfic; não importa — acerca dos valores incondicionais da liberdade de expressão. Em seu perfil do Twitter, a jornalista escreveu:
Vi o livro do Ustra na livraria da rodoviária de bsb.
Falei com o dono:
— O sr. acha ok vender livro de um torturador?
— Não existe livro proibido, sra.
— Não? E o livro do Hitler?
— Cada um que sabe de si, sra.
— Pois é, cada um sabe de si e o sr. sabe exatamente o que tá fazendo.
Uma avalanche de críticos, precipitadamente, acusou Amanda censura. A própria jornalista, logo em seguida, respondeu: “Falei do livro do Ustra, veio uma legião urrando que eu defendo censura (rs). Parece que não adianta ser literal, quem não quer entender simplesmente não vai entender. E não, não defendo censura - mas nem por isso venderia livro do Ustra na minha livraria”.
Longe de mim achar que a advertência ao dono da banca foi censura, tecnicamente falando. Censura seria se a força coercitiva do Estado — nossa instituição política de controle — baixasse ali para proibir o dono de vender.
Entretanto, a advertência e depois a resposta aos críticos deixam claro que se ela tivesse uma livraria, livros como o de Ustra não seriam vendidos — pergunto-me se ela também não venderia livros de Lênin, Guevara e Marighella? Enfim, de qualquer forma, enquanto proprietária privada de um estabelecimento, ela tem todo o direito de dispor nas prateleiras o que ela quiser. Se eu fosse dono de uma livraria, eu também não venderia uma montanha de livros porcarias.
Por princípio, também acho que ela e qualquer cliente tem todo direito questionar o dono de um estabelecimento e, se insatisfeita estiver, nunca mais voltar a pisar naquele lugar. Nesse ponto, a economia de mercado é o melhor remédio para censura — e Amanda se demonstrou uma excelente defensora desse sistema de trocas. Bem-vinda ao livre comércio de ideias
Por isso, a advertência dela não tem nada a ver com censura; tem a ver, mais precisamente, com o debate público a respeito dos limites da liberdade de publicação numa sociedade livre e pluralista. Há limites? Se há, quem e como determiná-los? Alguns livros deveriam ser proibidos? Se sim, o que fazer com livros que historicamente se demonstraram perigosos? E por aí vai. Como eu me interesso muito por livros, interesso-me também por essa discussão.
Pessoalmente, sou da opinião de que nenhum livro — e não importa de quem seja — deve ser proibido. Claro que entendo livro aqui como um objeto organizado para publicação de ideias e experiências literárias. Ora, a coisa mais preciosa de um livro é que você simplesmente pode optar por não o ler; e se optar por ler, você pode, também livre e democraticamente, mostrar porque ele está certo ou errado. A experiência da liberdade é muito difícil e às vezes preferimos terceirizar essa responsabilidade.
Se uma pessoa não for capaz de refutar um livro, então essa mesma pessoa não é capaz de justificar porque o livro tem de ser proibido. Para proibi-lo, primeiro ele precisa estar disponível no mercado das ideias a fim de que seja lido pelos membros da comunidade democrática, cujo fundamento é a liberdade de expressão universal e irrestrita. Liberdade de expressão, vale ressaltar, não significa fazer qualquer coisa como se não houve amanhã.
Algumas ideias podem ser muito perigosas — a história já demonstrou isso várias vezes —, mas nada é mais perigoso do que proibir a circulação de ideias, inclusive as perigosas. Afinal, o ponto de partida de uma ideia perigosa é tentar calar o adversário alegando ser ele uma ameaça. Quem diz que “rejeita conceitos” não faz a mínima noção de que o debate público democrático se constitui não pela simples rejeição, mas pela investigação argumentativa das ideias —às vezes até dissonantes — que circulam e dá sentido ao espaço democrático.
No espaço público democrático não há verdades preestabelecidas de antemão. Ao contrário, há conjuntos de ideias e crenças circulando e que para se justificarem precisam do confronto argumentativo. Se existisse “verdade de antemão” que determinasse quais ideias não podem circular, o critério dessa verdade também teria de ser justificado de forma argumentativa e crítica.
Isso significa que o espaço democrático é formado pelo — desculpa o termo — constante “despejo de ideias” — corretas para alguns, perigosas para outros — e que cada membro que compõe esse espaço tem a obrigação moral de, livremente, questioná-las ou defendê-las, sem qualquer receio de que haverá um cordão sanitário determinando o que pode ou não ser consumido.