A tarefa de analisar distopias e associá-las com os dilemas do mundo moderno não é nenhuma novidade. O otimismo com relação ao progresso deve ser contrabalanceado com um tantinho de suspeita. Particularmente, considero o trabalho de imaginação distópica um dos mais importantes para compreendermos os limites da nossa condição humana. Após os experimentos catastróficos do século 20, decorrentes do excesso de confiança na razão e na tecnologia, as distopias se tornaram ferramentas poderosas para testar as nossas pretensões.
Seguindo minha série de filmes e filosofia, hoje gostaria de propor uma reflexão acerca de nada menos do que Blade Runner 2049. Assisti ao filme no cinema assim que foi lançado, em 2017. Mas, em virtude de um trabalho que desenvolvi com meus alunos de ensino médio sobre distopias, tive o prazer de rever esta obra-prima de Denis Villeneuve, inspirada no universo criado por Philip K. Dick em seu romance Do Androids Dream of Electric Sheep?
Blade Runner 2049 é uma espécie de continuação do filme original, não apenas trazendo de volta personagens-chave como Rick Deckard e Rachael, mas também a atmosfera sombria, com uma paisagem capaz de refletir o tom melancólico e contemplativo, além da trilha sonora, agora composta por Hans Zimmer e Benjamin Wallfisch, que continuam o legado de Vangelis. Entre nós, o filme é um espetáculo e leva os temas existenciais introduzidos no filme de Ridley Scott às suas últimas consequências. Se o primeiro filme discutia a questão da finitude, este aborda o problema do nascimento.
Em Blade Runner 2049, o tema não é a efemeridade, mas o milagre da vida. O niilismo do primeiro filme é transfigurado pelas possibilidades do nascimento de uma nova vida
No filme original dos anos 80, há o famoso monólogo chamado “Tears in Rain”, do replicante Roy Batty: “I’ve seen things you people wouldn’t believe. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched C-beams glitter in the dark near the Tannhäuser Gate. All those moments will be lost in time, like tears in rain. Time to die.” Em outras palavras, diante da morte, todo espetáculo da vida não passa de efêmeras “lágrimas na chuva”.
Já no filme de Villeneuve, o tema não é a efemeridade, mas o milagre da vida. O niilismo do primeiro filme é transfigurado pelas possibilidades do nascimento de uma nova vida. Esse é o eixo central de toda a narrativa: a consciência de ser alguém se relaciona com o fato de que pessoas, e não replicantes, nascem.
Situado no ano de 2049, o filme traz como protagonista o agente K. (interpretado por Ryan Gosling), um policial responsável por “aposentar” replicantes desobedientes de modelos antigos. Não preciso dizer que “aposentar” significa “eliminar”. Ele também é um replicante, mas começa a suspeitar da possibilidade de ter nascido como um ser humano. Sua busca por respostas o coloca em um caminho de confronto com o magnata Niander Wallace (Jared Leto), que deseja desvendar e explorar o segredo dos replicantes. Ao longo do caminho, K. encontra Rick Deckard, o Blade Runner original, interpretado por Harrison Ford.
A cena inicial do filme fornece toda a chave para a discussão. Quando o agente K. confronta Sapper Morton, um replicante que ele foi designado para “aposentar”, ocorre uma troca de diálogos sobre a alma e o milagre. Morton questiona K. sobre a natureza da alma, perguntando se ele já testemunhou um milagre.
A fala exata de Sapper Morton é: “Você nunca viu um milagre”. Ela está inserida em uma discussão na qual Morton questiona a própria humanidade de K. e sua falta de empatia por ter ido matá-lo. A referência a um “milagre” estabelece o problema da natureza humana e a possibilidade de reprodução dos replicantes. Trata-se, na verdade, do milagre da vida, ou seja, do fato de que nós nascemos e não somos meros produtos.
Para encerrar, gostaria de dizer que nas três vezes em que assisti ao filme imediatamente lembrei-me destas reflexões de Hannah Arendt em A Condição Humana:
“Fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas para a ruína e a destruição, se não fosse a faculdade humana de interrompê-las e iniciar algo novo, faculdade inerente à ação como perene advertência de que os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para começar. […] O milagre que salva o mundo, a esfera dos negócios humanos, de sua ruína normal e ‘natural’ é, em última análise, o fato do nascimento.”