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Bom dia para morrer

Michael Richter/Free Images (Foto: )

Morrer é um ato solitário. Morre-se sozinho e digo por experiência própria. Não que eu tenha morrido e voltado pra contar, nostálgico, o evento libertador de minha alma. Não, nada disso. O leitor pode dormir tranquilo, não sou um fantasma e muito menos ressuscitei dos mortos pra atormentar quem mereça. Nosso reino da Dinamarca continua podre e com os mesmos espectros nos assombrando. Por outro lado, eu estou bem vivo. Vivinho da Silva, como diria meu avô — que morreu de doença com pouco mais de 70.

A experiência da qual me vanglorio é a de quase morte. Não aquela famosa de quase-morte — segundo relatam — em que a gente sai do corpo, observa rapidinho tudo de “fora” e volta pra vida convertido e desapegado dos prazeres mundanos. Estou vivo, cheio de caprichos, continuo dando valor aos prazeres mundanos e prometo não tratar da minha quase morte melancolicamente. Depois dos 40, o romantismo, com suas pieguices e amores utópicos, passa. Ou, pelo menos, deveria passar; pois — perdoe-me o poeta — nada seria mais brega do que uma “Lira dos quarenta anos”. Esse tipo de coisa funciona até os 20, depois disso melhor ir jogar Little Big Planet no PS3 com as crianças.

Jamais deixaria a vida como se deixa o tédio. Além do mais — e estou dogmaticamente convencido disto —, minha mocidade sonhadora já não sonha mais, por razão simples: não acabaram os sonhos; acabou-se a mocidade. Deve haver um bom dia para morrer, não farei objeções aos amigos dramáticos. Contudo, parafraseando Santo Agostinho: “Padre, dai-me a extrema unção, mas não agora”. Prometi não ser melancólico, respeito os homens de palavras.

Numa madrugada chuvosa de dezembro de 2017 perdi o controle do carro a 120 km/h, no km 41 da Rodovia Castelo Branco. Voltava de São Paulo para Sorocaba. Sozinho e, como de costume, confiante. Confiava no carro, confiava nos pneus, confiava na pista, confiava nas minhas habilidades. Confiava, como se deve confiar, em tudo — ou, sem falsa modéstia, quase tudo — o que fizera da vida. Alguns arrependimentos aqui, um excesso de fracassos ali e, como bom cristão, pecados não totalmente resolvidos. Três filhos, dois livros publicados, um casamento feliz, uma carreira bem-sucedida como professor de Filosofia. Enfim, o dinheiro que vier será lucro.

Quando o carro rodopiou na pista, minha vida não passou diante dos meus olhos. Juro, até me esforcei pra encontrar alguma cena edificante na memória. Se for pra morrer num acidente de carro, que se morra com alguma dignidade. Porém, nada. Frustrado, não me lembrei dos primeiros passos, do primeiro tombo de bicicleta, do penteado careta que minha mãe me obrigou a usar na primeira comunhão, do primeiro beijo. Não me lembrei de nada. Apenas senti, ao perder parcialmente o controle do carro e totalmente o da vida, o impacto do guard-rail e os estilhaços de vidro voando na minha cara. Sem pensar e sem tempo para ficar assustado, o instinto ditava as regras do corpo: “Retome o controle do carro. Vire o volante pra esquerda. Agora, vire-o pra direita. Não pise bruscamente no freio. Acelere. Respire. Reze, pois, se algum caminhão bater, fodeu”.

Como se escapa de um corretor imobiliário ou de uma amante perdidamente apaixonada, consegui driblar a morte e conduzir o veículo até um braço de acesso que liga a pista à central de comando da concessionária responsável pela rodovia. Se fosse um poeta de 20 anos procurando a sombra de uma cruz para escrever minha epígrafe nela, esse seria um bom dia para morrer. A cena era perfeita e carregada de magníficos efeitos estéticos: o tilintar da chuva no capô amassado, uma casinha distante com a luz âmbar da varanda acesa, a solidão, o silêncio de morte, a madrugada. Metafisicamente, reconhecer que todas aquelas coisas incomunicáveis a respeito do sentido da vida continuarão, a despeito do engajamento de tantos filósofos, sem respostas.

Quando se quase morre, a única certeza é de que realmente se morre, gostando ou não da ideia, revoltando-se ou não com a existência. As convicções políticas, as pretensões intelectuais, os projetos profissionais, as mentiras esfarrapadas dos livros de autoajuda e toda aquela conversa sobre vencer os obstáculos perdem valor. Quase morrer é viver a aventura da insignificância e lembrar que, se o orgulho transformou anjos em demônios, as incertezas transformam homens em humanos.

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