Não deposito esperanças em políticos. Em nenhum deles. Seja de direita, centro-direita, centro, centro-esquerda ou esquerda. Isso para não falar dos extremos — sem qualquer insinuação, obviamente. O tal do “Estado moderno”, por si, é bicho complicado. Acentua-se a isso aquele pequeno dado geográfico aborrecedor a nós, brasileiros: políticos trabalharam e continuarão a trabalhar lá de Brasília. Por mais que tentem o contrário, o Brasil não é uma quimera de Brasília. Não sei o quanto o próximo governo está disposto a entender isso. Com exceção de algum momento ou outro muitíssimo específico, os antecessores não entenderam.
Penso em Brasília — digo, na ideia política de Brasília — como uma distopia realizada no baricentro desse imenso triângulo chamado “mapa do Brasil”. O mito fundador começa assim: Deitado eternamente em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu profundo, algum burocrata entediado com o mundo e seduzido pela frieza geométrica de suas magníficas ideias de justiça e beleza abriu o mapa desse gigante pela sua própria natureza, traçou as medianas, e declarou: “vai ser aqui mesmo”. Brasília é que não passa da nossa quimera política. Fico imaginando como seríamos diferentes se a capital tivesse continuado no Rio, ou por que não Salvador.
Sem perder de vista meu ceticismo, minhas expectativas com o novo presidente consideram que a ideia de Brasil continue assim bem “acima de tudo”, principalmente acima das pretensões políticas dos políticos em Brasília, incluindo, é claro, o próprio presidente. Reconheço o quanto forço a mão na exegese a fim de minimizar o tom triunfalista do slogan de campanha presidencial. Verdade seja dita, pelo menos não é tão forçada quando comparada à paranoia daquela galera apocalíptica que vê nazismo em qualquer pedaço de linguiça. Li gente piamente desesperada afirmando que houve “inspiração direta” no Deutschland über alles. Não é pra tanto, e não temos um Führer para chamar de nosso.
Voltando ao caso, racionem comigo: o Brasil é uma ideia que não cabe na cabeça de ninguém. Ou melhor: não há ideia de Brasil, por mais abstrata, bem desenhada, portentosa e empolgante que seja, capaz de comportar a soberana complexidade de cada brasileiro. Podem perguntar para os maiores especialistas de “Brasil”, todos os que tentam reduzi-lo a uma fórmula sabotam cada cidadão comum brasileiro, e de alguma maneira desastrosa. Resumindo, não há especialistas capazes de definir e tiranizar, numa fórmula geometricamente adequada e cristalina, o que significa “Brasil”. Nesse caso, concordo (embora não esteja convencido de que ele pense assim) com o presidente: como ideia, o Brasil deve estar mesmo bem acima, mas bem acima mesmo, de tudo.
Depois de anos com governos mais alinhados para o lado esquerdo (preocupação com as questões sociais mediada pela força coercitiva do Estado), temos um de direita (seja lá o que isso signifique nessa altura do campeonato). Convenhamos, sinal de que os anteriores governos de esquerda não foram tão socialistas assim. Definitivamente, o Brasil não se transformou num país socialista — utópico, real ou científico. Os problemas dos governos anteriores foram outros; e, cá entre nós, se pretenderam instaurar o comunismo, pegando em armas ou revolucionando a cultura para, enfim, instaurar o novo regime, fracassaram feio. E para uma referência extrema, estamos anos-luz de uma Coreia do Norte — por um misto de razões que não cabem julgamento agora.
Por isso, duas coisas me despertaram atenção no discurso de posse de Jair Bolsonaro: as referências tanto à ideologia quanto ao restabelecimento dos padrões morais da sociedade.
Primeiro quando ele diz que “não podemos deixar que ideologias nefastas venham a dividir os brasileiros”. Isso contém aquele tom de discurso de campanha. Sinto muito, goste ou não, agora Bolsonaro governa para todos os brasileiros. Se continuar nesse tom, vai parecer justamente alguns de seus adversários, só que com sinal trocado. Ok, trata-se da dinâmica da ordem democrática, o baile do poder, onde o dever de governar respeita incondicionalmente o direito de quem é governado. Mas olha a ironia da democracia, para eles que ontem governaram, as ideologias que Bolsonaro defende são nefastas e dividem os brasileiros.
Difícil se livrar de uma ideologia, cada um de nós traz no peito uma imagem residual do mundo que desejamos. Estar no poder não nos priva de uma ideologia. A diferença é estar no poder, o que é uma baita de uma diferença. Nesse caso, devemos confiar na impessoalidade das instituições, em suas simetrias, isto é, na capacidade de respeitar a escala de prioridades e limites de ação. Transparência aqui é tudo. O combate às ideologias nefastas, portando, deve ser tarefa não de estadistas, mas do livre comércio das ideias.
Segundo. Não sou muito chegado ao papo de “restabelecer padrões morais”, sobretudo quando a gente pensa que quem pretende fazer isso quer fazer lá de Brasília. Sempre desconfio de político exortando algo como “podemos, eu, você e as nossas famílias, todos juntos, restabelecer padrões éticos e morais que transformarão nosso Brasil”. Aqui se perde aquele senso de pluralismo irredutível saudável à democracia. Dou um desconto por ser discurso de posse, depois de anos de PT. Poderia ser pior, poderia ser um discurso do Haddad. Mas sei lá, não consigo deixar de pensar na pitoresca cena de uma tia hiponga cantarolando Imagine do John Lennon. Mal falo “bom dia” para o meu vizinho, quiçá sou capaz de imaginar todos juntos, eu e você, caro leitor, como uma nação feliz e unida, restabelecendo a moralidade.
De qualquer forma, desejo que Bolsonaro faça, nesses próximos anos de governo, um excelente trabalho; o que para mim significa basicamente que ele saiba respeitar os limites de suas ações políticas. Não desejo nem mais nem menos de que o seguinte: que os acertos de seu governo beneficiem cada cidadão — por dever de ofício —, mas que os erros sejam pagos só com a própria ruína e não a dos brasileiros.
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