Ouça este conteúdo
Tenho uma solução irrefutável para o problema do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Sem polêmica, acompanhem meu raciocínio. Se os votos do casamento fossem indissolúveis, não haveria discussão acerca dos presumidos direitos ao casamento igualitário. No mundo pós-moderno, em sã consciência, ninguém mais quer votos para a vida toda, nem declara amor pela eternidade. Hoje, os laços matrimoniais são frouxos para serem facilmente desatados.
Assim, a ideia de que o casamento não passa de um contrato secular visa um objetivo: afrouxar os nós dos relacionamentos. Casamento virou negócio muito simples: não gostou, larga. Amor é só um sentimento. Casar-se não vai além de um pacto civil, um acordo firmado entre dois adultos livres e tomados pela paixão momentânea. Até que a morte os separe uma ova. Afinal, o que o homem uniu qualquer um separa. Nada de sacramentos, portanto.
O casamento igualitário só poderia ser uma conquista de sociedades democráticas liberais. Se todos são iguais, por que só os casais heterossexuais podem firmar este pacto perante o juiz e as madrinhas malvestidas? O argumento é simples: a família muda com o tempo. A velha estrutura mamãe, papais e filhos simboliza o patriarcado opressor. Há tantas outras formas de amar. O amor é tão bonito. E, poxa, o Estado é laico, convenhamos. As tradições religiosas já não determinam os fundamentos dos nossos acordos legais.
A noção de que o Estado deva reconhecer o casamento não passa de um contrassenso derivado da confusão entre “Estado” e “sociedade civil”. Damos muito poder ao Estado ao ser o detentor do monopólio da vida matrimonial
Há quem faça desse tipo de raciocínio o centro da agenda política a partir do qual se resolveriam as desigualdades sociais e as injustiças familiares. O amor é tão bonito. Deste modo, a luta pelo direito da união homoafetiva torna-se uma verdadeira bandeira política de amor. Então, contrariando tudo o que se poderia imaginar na história, a religião é jogada para o mais íntimo dos foros na medida em que a sexualidade emerge no centro do cenário político.
Todavia, um dos traços característicos da atividade política no ocidente sempre foi a distinção fundamental entre “esfera pública” e “esfera privada”: o que é de casa fica em casa, do portão para fora tratamos como bem comum, como coisa pública; com efeito, o maior bem público de uma civilização é o seu conjunto de leis, cuja compressão se dá por meio da razão e do bom senso. Por que não dar uma esticada e incluir o amor?
Uma das razões pelas quais o casamento nunca esteve vinculado ao ato político é que seu fim não é outro a não ser o de formar uma família. A saúde espiritual de uma sociedade – acreditava-se – dependia fundamentalmente disto: quando há filhos moralmente saudáveis, temos uma sociedade saudável. Quando a família é psicologicamente bem estruturada, os filhos tendem a ser bem estruturados. Pai e mãe eram figuras sagradas. O grande patrimônio de uma relação conjugal era a vida dos filhos. A própria transmissão da vida e dos valores mais básicos dependia dos bons laços familiares. Mas quem quer filhos se podemos ter um pet?
Todo filho tem um pai e uma mãe, avôs e avós, bisavôs e bisavós, às vezes tios e tias, primos e primas. Um filho não é uma abstração, mas uma pessoa real determinada, em última instância, por relações familiares. Sendo assim, a realização familiar – e, consequentemente, a realização de uma sociedade – fundamentava-se na participação pessoal de construção dessa memória histórica. Para além da cultura, família também era expressão da natureza; em outras palavras, o ponto de intersecção entre a natureza e a cultura, cujo fundamento não poderia ser reduzido ao afeto sexual. Mas isso aqui é pura ladainha conservadora, convenhamos.
Mas minha solução é a seguinte: acho ingênua e até reveladora a noção de que cabe ao Estado reconhecer o casamento gay. Quem reconhece um casamento são as famílias dos nubentes e a própria comunidade civil. A noção de que o Estado deva reconhecer o casamento não passa de um contrassenso derivado da confusão entre “Estado” e “sociedade civil”. Damos muito poder ao Estado ao ser o detentor do monopólio da vida matrimonial. E o problema não tem nada a ver com o fato de o Estado ser ou não laico. A expectativa de que cabe ao Estado reconhecer o casamento pressupõe que o Estado precede – e por isso tem mais poder – a família e a sociedade, não obstante ainda acredito que a família e a sociedade que deveriam preceder e fundamentar o Estado.
Sem querer me meter na vida dos outros, pois isso é só uma reflexão filosófica sobre o tamanho do Estado em nossa vida, deveríamos lutar não pelo reconhecimento do casamento igualitário, mas pelo processo de desestatização do próprio casamento e, principalmente, da sociedade civil.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos