Há quase um ano, o X, antigo Twitter, adotou como único mecanismo de checagem de fatos as Notas da Comunidade, escritas e votadas pelos próprios usuários da rede social. Críticas raramente comparam o sistema às alternativas.| Foto: Eli Vieira com Midjourney
Ouça este conteúdo

A democracia é feita de pessoas comuns, não de especialistas. No que diz respeito ao peso do voto, a experiência mais intuitiva das decisões políticas em eleições democráticas é “uma pessoa, um voto”. O nome é bonito: sufrágio universal. Trata-se do princípio democrático segundo o qual todos os adultos têm o direito de votar, sem discriminação que considere fatores como raça, sexo, riqueza e, nesse caso, formação. Deve incomodar um pouco os especialistas considerar que na hora do voto todos somos iguais e a especialidade deles não tem valor. A frase tem até um efeito retórico e fico meio constrangido por parecer ligeiramente clichê, mas é sério: A democracia não exige diplomas, mas título de eleitor.

CARREGANDO :)

Não há experiência política mais inclusiva e intuitiva do que “uma pessoa, um voto”. Nas eleições democráticas, o peso do voto é o mesmo tanto para o meu vizinho fofoqueiro e analfabeto quanto para aquele discreto professor doutor em Ciência Política, que às vezes é convidado a fazer comentários no telejornal das 20 horas. Também vale tanto para um jovem ativista ambiental, a tia Lurdes do coral da igreja, uma empresária bem-sucedida que vende cursos sobre investimento em criptomoedas no Instagram, como um motorista de Uber opinativo sobre o fiasco do Botafogo no Brasileirão de 2023 e um influenciador digital que faz dancinhas socialmente engajadas no TikTok.

Não importa quem você seja na fila do pão, quantas pessoas influencia no YouTube ou quanto dinheiro tenha na conta bancária, o sufrágio universal garante que, no dia das eleições, você seja tão importante quanto um monarca tomando decisões políticas. A democracia faz de cada cidadão um reizinho dos próprios interesses. Isso sem considerar a possibilidade de todo cidadão poder participar ativamente do debate público. Portanto, a democracia não se limita só a decisões no dia das eleições, mas em constante troca de informação e debate livre de ideias na esfera pública.

Publicidade

Por que o “Notas da Comunidade”, uma nova ferramenta do X que permite que usuários comuns possam avaliar postagens, tem preocupado tanto os especialistas?

Então eu pergunto: por que o “Notas da Comunidade”, uma nova ferramenta do X que permite que usuários comuns possam avaliar postagens, tem preocupado tanto os especialistas? Pelo menos é o que diz uma matéria do jornal O Globo: “‘Checagem coletiva’ no antigo Twitter permite uso político e desafia TSE nas eleições de 2024”. Como não só de manchete a gente vive, vamos a alguns trechos do texto. Não comentarei tudo, mas já notem o primeiro parágrafo:

“O sistema colaborativo de verificação de informações da rede social X (antigo Twitter), batizado de Notas da Comunidade, abre uma nova frente de preocupação para as próximas eleições em diversos países e vai desafiar a Justiça Eleitoral brasileira. Lançado aqui em março, o recurso permite que um conjunto de usuários comuns, previamente cadastrados e aprovados pela rede, possa inserir e avaliar textos em postagens de terceiros com o objetivo de ‘contextualizar’ conteúdos. A prática, no entanto, permitiu nos últimos meses a veiculação de desinformação e mensagens enviesadas.”

Aparentemente, nada de mais. Porém, destaco dois pontos. Para além da descrição de como funciona o sistema de colaboração de Notas da Comunidade, o texto destaca a ideia de que esse mecanismo colaborativo de verificação desafia a Justiça Eleitoral e faz denúncias de que o sistema teria veiculado desinformação e mensagens enviesadas.

Nesse texto, vamos ver o que dizem os “especialistas” convidados para comentar a pauta da matéria. Na semana que vem, comento o problema das “desinformações e mensagens enviesadas”.

Publicidade

A jornalista Tai Nalon, diretora e cofundadora do site de checagem de fatos Aos Fatos, comenta o seguinte: “Há um cenário em que se pode ‘gameficar’ a verificação de fatos. Qualquer pessoa pode votar sobre qualquer assunto, anonimamente, e isso acaba gerando vulnerabilidades. A gente não sabe se grupos políticos podem organizar uma publicação e a aprovação das notas. A gente não sabe como é balanceado o algoritmo, quantos votos são necessários para que uma nota entre e saia do ar”.

São dúvidas interessantes, porém, facilmente respondidas. A ideia de ‘gameficar’ a verificação dos fatos não deveria preocupar. A própria Tai Nalon fundou e dirige uma agência de checagem de fatos. Por que a agência dela vale mais do que a checagem colaborativa dos usuários do X? Se “gameficar” significa “jogar”, então, sim, a democracia é um jogo de informações na esfera pública. Qual o problema? Como especialista, ela tem seu viés político também, certo? Certamente tem, e não há problema nisso. Alegar que “qualquer pessoa pode votar sobre qualquer assunto, anonimamente” e que “isso acaba gerando vulnerabilidades” não deveria trazer temor político numa democracia. Só para tiranos. Se votar anonimamente implica necessariamente em vulnerabilidade, a democracia é vulnerável. Mas o que significa ser “vulnerável” aqui, e por que ser vulnerável não é um defeito, mas a qualidade da democracia?

Por que as agências de checagem de fatos valem mais do que a checagem colaborativa dos usuários do X?

“Vulnerável”, neste contexto, significa “estar sujeito ao interesse político de grupos”. Todo conhecimento que circula na esfera pública democrática, inclusive decisões políticas em eleições, está sujeito ao interesse de grupos. Ora, mas a democracia visa justamente corrigir isso com um sistema constante de verificação anônima chamado de “eleições”, e amplo debate público. Não é o defeito da democracia a validação constante de informação feita por diversos grupos. Tai Nalon tem seu grupo e não pode falar em nome de verdades absolutas. A ciência faz checagem dos fatos segundo a metodologia científica, a democracia faz correção de informação e validação normativa na esfera pública. No espaço público da discussão, especialistas são sujeitos às mesmas correções que qualquer outra pessoa.

A outra especialista, Yasmin Curzi, que é professora de Direito na FGV, “vê risco de instrumentalização das notas por campanhas políticas e aponta que o cenário se agrava em meio à possibilidade de não ser aprovada até o ano que vem uma ampla regulação do setor. O chamado PL das Fake News, proposta que fixa normas de transparência para as big techs no país, ainda aguarda votação na Câmara. Há dúvidas ainda se o X vai colaborar e aderir a eventuais parcerias com a Justiça Eleitoral”. Vejam que curioso, a preocupação dessa especialista é com a instrumentalização das notas por campanhas políticas. Justo. Porém, o ponto é que, para ela, “o cenário se agrava em meio à possibilidade de não ser aprovada o PL das Fake News”. Ou seja, ela tem um viés político, defendendo claramente o PL das Fake News. Por que o cenário se agrava se ele não for aprovado? Agrava-se segundo o viés político e os interesses dela.

Publicidade

Comentarei o segundo ponto na próxima semana.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]