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Com muito custo, descobri que a civilização é uma conquista difícil e frágil. Verdade seja dita: ninguém nasce civilizado. Temos uma disposição natural tanto para a bondade quanto para a perversidade. Com a diferença de que a perversidade é fácil, enquanto a bondade é difícil. A vida civilizada se constrói por um longo caminho tortuoso. A barbárie, pelo contrário, por uma rota fácil. O homem é livre e precário, um ser complexo e carente. Sem liberdade, não passaríamos de bestas ambulantes, literalmente. Por sua vez, temos consciência de nossa finitude. Sabemos que vamos morrer e não temos garantias de que seremos plenamente satisfeitos, neste ou em qualquer mundo possível. A maldade está logo ali, pertinho do coração, como um verdadeiro atalho para homens perversos.

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Uma das nossas principais conquistas civilizacionais é o valor de dignidade de cada indivíduo, que vive a experiência de ser uma pessoa e não uma coisa. Ser pessoal implica ser sujeito de direitos e deveres. Diferente dos outros animais, o homem age moralmente e estabelece relações morais recíprocas com outras pessoas. Agentes morais agem em razão de suas escolhas e justificam suas ações. Além disso, respondemos por nossos atos. Mesmo assim, homens bons praticam o mal. Nesse sentido, a dignidade funciona como parâmetro e garantia de que nem tudo o que é desejável deva ser possível.

A pessoa precisa ser compreendida como uma singularidade e não como um rótulo ideológico. Do ponto de vista social, “pessoa” nunca se refere a uma determinada classe ou grupo. Pois ser pessoa desenvolve a autoconsciência de ser uma singularidade encarnada diante de outras pessoas. Antes de Mariana ser feminista, ela é alguém. Antes de Alexandre ser negro, ele é uma pessoa. Antes de Paulo ser de direita ou de esquerda, ele é filho de João e Ana, duas pessoas e não meros membros de uma classe média. Não mantemos relações morais recíprocas por meio de rótulos. Nossas relações são do tipo interpessoais. Não odeie se antes não é capaz de chamar alguém pelo nome. Odiar “brancos”, “negros”, “homens” ou “gays” é fácil. Já que a barbárie é fácil.

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As noções de indivíduo, dignidade e pessoa são os maiores patrimônios que a cristandade legou para a história. Está lá, pelo menos desde Boécio, no século 6º. Os conceitos de pessoa e dignidade são muito mais importantes em termos de conquista civilizacional do que qualquer outra conquista humana. Do que adianta banho quente, conquista espacial, iPhone, internet e penicilina se não temos consciência de nossa dignidade? Ser pessoa é ser digno e não faz sentido falar em direitos humanos sem antes pensar que o sujeito de direito são as pessoas.

O cristianismo pode ter criado as universidades, seus arquitetos podem ter construído as catedrais de Chartres, de Colônia, de Notre Dame, de York ou a monumental catedral de Estrasburgo; Bach pode ter composto a Paixão segundo São Mateus, Mozart o Réquiem e Beethoven sua arrebatadora Missa Solemnis; fora as pinturas e a literatura dos grandes mestres. O fato é que nada dessas coisas teria alguma importância se a consciência de ser uma pessoa não tivesse sido desenvolvida. O que diferencia a cristandade das outras civilizações é, precisamente, o desenvolvimento da ideia de dignidade pessoal. Numa palavra, entender que cada um de nós participa como membro de um mesmo reino de fins.

Para dar um exemplo: depois da vitória do cristianismo contra as superstições pagãs, as condições sociais das mulheres melhoraram muito ao longo da história. Não melhoraram de uma hora para outra, já que não faz parte da dinâmica da história haver grandes saltos qualitativos. Porém, o primeiro impulso mental se deu graças às profundas mudanças teológicas inspiradas na compreensão cristã do homem como imago Dei. “E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou”. Jacques Le Goff, um grande estudioso da Idade Média, escreveu que “na concepção cristã da mulher e na visão da Igreja medieval, a mulher é igual ao homem”. Nem mais nem menos. No mito da criação, Eva nasceu da “costela” e não dos “pés” de Adão. Nasceu para ser companheira e não para ser submissa.

Li recentemente a respeito da “mutilação genital feminina”, mais especificamente em uma tribo na Colômbia. É espantoso pensar nessa prática. Uma jovem da tribo comenta: “Ela viu o que as parteiras faziam. E fez sozinha: cortou com uma tesoura o clitóris do bebê, e começou a jorrar sangue e a bebezinha morreu assim, jorrando sangue, com hemorragia”. Evidentemente, a mãe não queria o sofrimento da filha. Trata-se do costume e superstição. Talvez um homem, ocidental e cristão, não devesse se meter na cultura alheia. Dona Irene, membro da tribo, referindo-se ao seu clitóris mutilado, explica: “Não tenho isso, não tenho nada, tenho limpo. Como se chama isso? Isso, isso não tenho”. A ela foi apresentado um desenho do órgão sexual feminino. Ela respondeu: “dor”.

Há quem trate isso como prática comum milenar, e deve ser respeitada. Pela regra do pluralismo multiculturalista, devo suspender meus juízos etnocêntricos e aceitar de bom grado. Resumindo: não se trata do meu “lugar de fala”. Uma das razões que explicam essa prática na Colômbia é ter sido adaptada dos escravos negros que vieram do Mali no século 18. Não se sabe com certeza. O certo é que o filósofo inglês John Stuart Mill, já em 1869, publicava o livro A Sujeição das Mulheres. Com razão, ele demonstra o quanto é indefensável a subordinação do sexo feminino ao masculino. Um herdeiro da civilização cristã, a verdadeira civilização das mulheres, pois é a civilização das pessoas. Como escreve Le Goff: “Faz-me pensar em uma coisa que, como historiador, sempre me chamou a atenção, mesmo não sendo crente: penso que uma parte do Ocidente teve a sorte de ter o cristianismo como religião”.

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